Neste sábado (30), o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, urgiu os EUA e aliados a pararem de fornecer material bélico à Ucrânia, caso estejam "realmente interessados em resolver a crise" no país.
"Se os EUA e a OTAN estão realmente interessados em resolver a crise na Ucrânia, deveriam, antes de mais nada, parar de fornecer armas e munições para o regime de Kiev", disse Lavrov em entrevista à agência de notícias chinesa Xinhua.
Alguns dias antes, em 28 de abril, o presidente dos EUA, Joe Biden, solicitou ao Congresso de seu país mais US$ 33 bilhões (cerca de R$ 164 bilhões) em "suplemento adicional" aos pacotes de ajuda militar à Ucrânia. De acordo com Biden, o pacote vai "manter um fluxo ininterrupto de armas e munições" para as forças locais.
Autoridades do Pentágono, no entanto, revelam que os EUA estão com dificuldades em garantir que esses armamentos sejam utilizados somente para os fins a que foram designados.
Em 2020, um relatório do Inspetor-Geral do Departamento de Defesa norte-americano expressou preocupação quanto ao monitoramento e utilização final do material bélico fornecido para a Ucrânia.
O relatório foi elaborado para "verificar que os artigos de defesa transferidos pelo governo dos EUA a receptores estrangeiros sejam utilizados segundo os acordos de transferência".
Efetivos das Forças Armadas ucranianas deslocam mísseis FIM-92 Stinger produzidos nos EUA, no Aeroporto Boryspil, Kiev, Ucrânia, 13 de fevereiro de 2022
© AFP 2023 / Sergei Supinsky
Fonte de inteligência ouvida pela CNN revelou que a capacidade dos EUA de monitorar o uso das armas na Ucrânia é baixo, uma vez que o país não possui tropas no terreno.
"Temos fidelidade por um período curto. Mas quando entra na névoa da guerra, ela cai para praticamente zero. Cai em um grande buraco negro", disse a fonte.
De acordo com especialistas, a falta de monitoramento pode levar à reexportação ou roubo de materiais bélicos por grupos armados ilícitos, assim como à criação de um ambiente de insegurança constante.
"Os riscos do desvio de armamentos é que ele pode favorecer conflitos regionais. Essas armas podem ser utilizadas para cometer genocídios e crimes contra a humanidade", disse à Sputnik Brasil o professor de Ciências Políticas da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) Antônio Henrique Lucena Silva. "O mercado negro de armas está presente [...] e essa exportação de armas leves terminam caindo na mão de grupos paramilitares."
No caso dos EUA, há preocupação de que parte dos armamentos fornecidos acabe em poder de grupos que Washington não tinha a intenção de armar.
Autoridades buscam evitar a repetição de cenários como o do Afeganistão, quando armas fornecidas pelos EUA para grupos que lutavam contra o Exército soviético acabaram no arsenal de grupos adversários de Washington, como o Talibã.
Recentemente, investigação da CNN revelou que armas fornecidas pelos EUA à Arábia Saudita e aos Emirados Árabes Unidos acabaram sendo transferidas para grupos que Washington classifica como terroristas, como Al-Qaeda e Daesh (organizações terroristas proibidas na Rússia e demais países).
O monitoramento é essencial para garantir que esses desvios não se repitam no caso ucraniano. De acordo com o Índice do Crime Organizado Global 2021, a Ucrânia tem um dos maiores mercados de armas ilegais da Europa, focado principalmente em armas leves e munições.
De acordo com Lucena Silva, os "desvios [de material bélico] são realmente mais comuns no mercado de armas leves, principalmente revólveres, pistolas e fuzis."
O relatório do Índice do Crime Organizado revela que cerca de 300 mil armas pequenas e leves foram perdidas ou roubadas no território ucraniano entre os anos de 2013 e 2015.
Buraco negro
Em artigo publicado no portal Inkstick, o especialista em Defesa do instituto Cato Jordan Cohen considera importante identificar para onde foram as armas fornecidas por Washington a Kiev desde o início do século XXI.
Dados da organização Security Assistance Monitor revelam que o fluxo de armamentos dos EUA para a Ucrânia é intenso desde os anos 2000. Picos de fornecimento ocorreram em 2002, quando as transferências totalizaram cerca de US$ 67 milhões (cerca de R$ 333 milhões), e 2008, com US$ 80 milhões (cerca de R$ 397 milhões).
Aeronave da Força Aérea dos EUA com o primeiro lote de veículos blindados norte-americanos no Aeroporto Internacional de Kiev-Boryspil, Ucrânia, 25 de março de 2015
© Sputnik / Mikhail Palinchak
A partir de 2015, após a crise na Crimeia, o fluxo anual de armas norte-americanas para Kiev permanece na casa dos US$ 200 milhões (cerca de R$ 994 milhões), revelam os dados.
Segundo Cohen, não está claro qual foi o destino final destas armas. Sabe-se, no entanto, que boa parte dos armamentos desviados são absorvidos por regiões como a África e a América Latina.
Lucena Silva ressalta que as autoridades locais utilizam mecanismos para coibir a entrada de armamentos ilegais, como "batidas policiais, monitoramento e serviços de inteligência".
O especialista também aponta para o mais recente relatório do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIRPI, na sigla em inglês), que revelou gastos mundiais recordes com armamentos em 2021, estimados em US$ 2 trilhões (R$ 9,65 trilhões).
"Existe hoje no mundo o que chamamos de dinâmica armamentista, na qual os países estão o tempo todo adquirindo e vendendo armas como forma de aumentar quantitativamente ou qualitativamente a força de seus exércitos", disse Lucena Silva.
Regulação internacional
No caso do Brasil, existem leis internas que buscam coibir o desvio de armamentos, como a proibição de exportação de material bélico para partes beligerantes em conflitos.
Porém, Lucena Silva lembra que "existem brechas na legislação", uma vez que armas exportadas pelo Brasil a um país que não está em conflito podem ser reexportadas para partes beligerantes.
A Organização das Nações Unidas também busca contribuir para diminuir o contrabando internacional de armas.
"A ONU aprovou o Tratado sobre Comércio de Armas, que é justamente um mecanismo para impedir a reexportação de forma ilegal", disse Lucena Silva.
Firmado em 2013, o acordo exige que países exportadores tenham mecanismos internos de rastreamento do uso final dos materiais vendidos e avaliem se suas transferências podem "prejudicar a paz e a segurança” internacionais.
O acordo, no entanto, é limitado a algumas categorias de armamentos convencionais. Por isso, "o comércio de armas segue em grande medida desregulado", lamentou o especialista.