No início deste mês, pesquisadores da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), do Museu Nacional (da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ), da Universidade Regional do Cariri (Urca), da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Coppe/UFRJ apresentaram um estudo de revisão sobre um pequeno réptil denominado Faxinalipterus minimus, cujo fóssil proveio de rochas datadas do Triássico (período geológico que começou há 252 milhões de anos e terminou há 201 milhões de anos) encontradas no Rio Grande do Sul.
O estudo foi publicado pela revista PeerJ e revelou que o Faxinalipterus não era o que se pensava. Até recentemente, acreditava-se que esse dinossauro fazia parte do grupo dos primeiros vertebrados a desenvolverem o voo ativo — entendimento que foi derrubado agora. Além disso, ao revisar a maxila do animal, a nova análise do Faxinalipterus permitiu estabelecer que, na verdade, há duas espécies distintas. Ou seja, o osso pertence a outro animal. Este recebeu o nome Maehary bonapartei.
Detalhes de reconstrução de Maehary. Arte de Márcio L. Castro
© Foto / Divulgação / Rodrigo Temp Muller
A descoberta, como explicou o paleontólogo Rodrigo Temp Muller, da UFSM, à Sputnik Brasil, revela a riqueza do sítio arqueológico gaúcho e mostra a capacidade da ciência brasileira de prestar contribuições no cenário da paleontologia internacional. Quanto ao Faxinalipterus não ser um réptil alado, ao contrário do que foi proposto anteriormente, o estudo joga luz sobre o processo evolutivo dos dinossauros e sobre nosso entendimento em torno dos famosos pterossauros.
A descoberta
Originalmente, o fóssil de Faxinalipterus era composto por ossos pós-cranianos e por uma parte do crânio (uma maxila com dentes), encontrados separadamente em duas expedições no sítio fossilífero Linha São Luiz, localizado no município de Faxinal do Soturno, no Rio Grande do Sul. Embora não fosse possível determinar se todas as partes pertenciam a um mesmo animal, assumiu-se na época que todos os ossos pertenciam a uma única espécie, o Faxinalipterus.
Outra imagem mostra os detalhes da reconstrução do Maehary. Arte de Márcio L. Castro
© Foto / Divulgação/Rodrigo Temp Muller
Na revisão, descobriu-se que o registro fóssil encontrado tratava de duas espécies distintas, com a maxila pertencendo a um animal novo, batizado neste estudo de Maehary bonapartei, em homenagem ao principal pesquisador de vertebrados fósseis da Argentina, José Fernando Bonaparte (1928-2020). A maxila exibe as mesmas feições daquela antes atribuída ao Faxinalipterus.
Rodrigo Temp Muller explicou que só foi possível detectar essas pequenas diferenças em função do uso de um tomógrafo, que "desvendou o enigma envolvendo o Maehary bonapartei". A tomografia computadorizada é um recurso cada vez mais empregado nos estudos paleontológicos brasileiros. A preparação do material original requereu muita experiência e foi realizada no Museu Nacional.
Maxila esquerda originalmente atribuída ao Faxinalipterus minimus, reclassificada como pertencente ao Maehary bonapartei
© Foto / Divulgação/UFSM
Segundo o especialista, a tecnologia fornece imagens "que a gente chama de 'slices', os cortes, que é como se a gente fatiasse os fósseis". Ele explicou que "quando a gente faz isso, é possível ver a estrutura interna do fóssil sem prejudicar sua estrutura. O mais importante sobre o uso das tomografias é a possibilidade de analisar estruturas internas sem danificar o fóssil. É possível fazer até mesmo a reconstrução do cérebro. No caso de fósseis pequenos, a tomografia pode extrair todos os elementos da rocha sem correr o risco de danificar o artefato".
Relação com os pterossauros
Passados quase 30 anos desde o lançamento do filme de Steven Spielberg, "Jurassic Park" (1993), algumas criaturas ganharam "fama", e os pterossauros, répteis voadores do Mesozoico que não são dinossauros, são definitivamente uma delas. Conforme explicou Rodrigo Temp Muller, a nova espécie Maehary bonapartei foi posicionada como o membro mais primitivo dentro do clado Pterosauromorpha.
Isso significa que o Faxinalipterus e o Maehary não são pterossauros, "porém são aparentados a eles. Especialmente o Maehary se configura como um elemento-chave na elucidação de como as características anatômicas foram evoluindo ao longo da linhagem dos pterossauromorfos até os pterossauros propriamente ditos, totalmente adaptados ao voo", pontua o paleontólogo.
Relação de parentesco envolvendo répteis basais, com destaque para o clado que inclui os dinossauros (Dinosauromorpha) e o que inclui os pterossauros (Pterosauromorpha). Esse último engloba o Maehary, como mais basal de Pterosauromorpha, seguido dos lagerpetídeos, família na qual Faxinalipterus foi classificado, e dos pterossauros
© Foto / Divulgação
Ele explicou que as novas espécies — Faxinalipterus e Maehary — têm um comprimento estimado entre 30 e 40 centímetros. Segundo ele, a principal característica dos pterossauros é voar. O fóssil do Faxinalipterus, entretanto, "tem parte do esqueleto preservado, incluindo o membro anterior, o braço. Esse membro não é igual ao dos pterossauros, portanto isso indica que ele não pode voar. Embora parecidos, eles têm processos evolutivos distintos, principalmente com relação às características de voo".
Segundo o especialista, há outras características que os diferem, "como a ausência do dígito 4 no Faxinalipterus, um osso que é fundamental para sustentar a membrana que permite o voo dos pterossauros". Já Maehary, como explicou, "é outra espécie e não tem os ossos do esqueleto pós-craniano. Também não há configuração de abertura da narina, como nos pterossauros. Os Faxinalipterus e os Maehary indicam semelhanças com pterossauros, mas não podemos colocá-los na mesma escala evolutiva, embora eles compartilhem um ancestral comum".
Agora os pesquisadores seguem em busca de novos achados que ajudem a entender como sugiram as primeiras formas dos tão fascinantes pterossauros.
Rio Grande do Sul: um local sagrado
A riqueza de fósseis no Rio Grande do Sul não é uma novidade para quem acompanha o grande momento que vive a paleontologia brasileira. Como apontou Temp Muller, "as descobertas por aqui têm sido constantes". Ele explicou que o tamanho desses animais não tem a ver com o ambiente em que eles viviam, "porque o sítio de Faxinal do Soturno é conhecido por fósseis pequenos, mas é possível também encontrar animais maiores, de quase dois metros".
Mapa com o ponto onde os fósseis foram encontrados (Linha São Luiz, Faxinal do Soturno, Rio Grande do Sul)
© Divulgação/UFSM
Ele apontou que a "ciência brasileira, a partir dos estudos nesta região, avançou muito no conhecimento acerca do cérebro de répteis e mamíferos que foram extintos. Recentemente encontramos um animal do período Jurássico, que ainda não recebeu um nome e está sendo investigado. Então há muitos estudos, e de diversas áreas. O momento é promissor".
E o que explica a riqueza de fósseis do período Triássico no Rio Grande do Sul? Segundo o paleontólogo, há uma combinação de fatores geológicos e climáticos que justifica a proeminência do local. Segundo ele, na época em que esses animais existiam, "aqui era um ambiente que proporcionava abundância de vida".
Ele explicou que "havia um ambiente de florestas e com grandes corpos d'água. Os fósseis indicam que o ecossistema era muito rico". Além disso, o especialista aponta o caráter geológico da região, que propicia a fossilização a partir de rochas sedimentares que preservam muito bem os registros. Entretanto, como o paleontólogo revelou, apenas uma boa preservação não gera resultados.
"A riqueza de fósseis daqui, embora importante, só pode ser acessada porque hoje temos um centro de pesquisa de paleontologia da Universidade Federal de Santa Maria funcionando na região. Isso é muito importante. Não adianta ter uma riqueza de fósseis, é preciso investimento e pessoas trabalhando para encontrar esses registros do passado do nosso planeta", concluiu.