Em meio ao discurso de crise nacional, entre as discussões que buscam saídas para mitigar os duros reflexos da inflação no país e o alto índice de desemprego, um levantamento realizado pelo instituto Contabilizei revelou um dado que poucos esperavam: março de 2022 apresentou recorde histórico em abertura de micro, pequenas e grandes empresas.
Mais de 1 milhão de novas empresas foram abertas no primeiro trimestre de 2022. Dessas, 79% operam sob a figura do Microempreendedor Individual (Mei). Em comparação com o primeiro trimestre de 2020, houve um crescimento de 19%. Há também um recorde histórico de abertura de micro e pequenas empresas, empresas de grande porte, indústrias e agronegócios realizada em um único mês. Em março, foram quase 80 mil novos CNPJs nessas categorias.
As notícias, a princípio, como apontou Guilherme Soares, vice-presidente da Contabilizei, ao portal G1, devem ser comemoradas, pois mostram "a retomada da nossa economia em um momento em que todos os setores estão conseguindo trabalhar no pós-pandemia". Ele destacou ainda a força dos micro e pequenos empreendedores, que respondem por mais de um quarto (27%) do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro.
A questão, entretanto, é mais delicada do que parece. Conforme explicação da professora de economia do Insper Juliana Inhasz, os números, de fato, atestam uma recuperação econômica, mas a confiança do brasileiro na economia ainda está baixa. Para ela, a pesquisa da Contabilizei revela que "o brasileiro está precisando achar meios de sobrevivência".
O aumento do número de CNPJs indica que aos poucos o setor industrial está se recuperando e voltando a gerar empregos. Contudo o elevado número de Meis criados nesse período revela que a recuperação não está se dando a partir da criação de novas indústrias e da geração de novos postos de trabalho para absorver a mão de obra do mercado. Isso significa que os trabalhos criados são, em ampla maioria, de baixa qualificação ou precarizados.
Juliana Inhasz explicou que o Brasil está "em um processo de recuperação, que acontece de forma lenta, contrariando as necessidades dos brasileiros, que precisam se realocar, recompor sua renda". Esse crescimento, explica a economista, "não mostra necessariamente confiança na economia". O que ele indica é que o brasileiro está precisando achar meios para pagar suas contas.
Ao mesmo tempo em que a especialista entende que o Brasil apresenta bons indicativos de uma possível volta à normalidade, é preciso levar em consideração que "há brasileiros que ainda precisam achar até mesmo uma forma de sobreviver. A realidade é que o desemprego é alto e há uma massa de subutilizados, que impede que o país comemore números como esse. Esses números devem ser entendidos com muita cautela".
Desafios para empreendedores continuam
Se, por um lado, a expressiva abertura de empresas no primeiro trimestre de 2022 reafirma de algum modo uma vitória do Brasil sobre a pandemia de COVID-19, os problemas para os novos empresários seguem sendo os mesmos. Juliana Inhasz afirmou que o principal desafio para o empresário brasileiro ainda "é conseguir sobreviver dentro de um ambiente pouco amigável".
A economista se refere aos inúmeros problemas burocráticos no país enfrentados pela iniciativa privada, enfatizando que há muitas barreiras para micro e pequenos empreendedores, como impostos elevados e oligopólios. Uma pesquisa realizada pelo Sebrae Rio (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas no Estado do Rio de Janeiro) em 2021 constatou que 61% das solicitações feitas pelas micro e pequenas empresas cariocas foram negadas em 2020, durante a pandemia.
O estudo do Sebrae Rio sustenta que a maior parte dos microempresários do estado abriu negócios por necessidade, sendo que muitos perderam o emprego ou não encontraram ofertas de trabalho na sua área de formação. As dificuldades são tantas que, como apontou a economista do Insper, "por causa delas, a maioria das microempresas desistem após o primeiro mês".
Além da burocracia (o Banco Mundial apontou que o Brasil ocupa a 124ª posição em ranking que mede o nível de facilidade para fechar negócios) e da carga tributária excessivas, empresários iniciantes relatam problemas para a expansão de seus respectivos mercados consumidores, dificuldades com gestão orçamentária e pessoal e diversos outros obstáculos envolvendo a estruturação de seus negócios.
Como se vê, aqueles que chegam ao mercado de trabalho como Meis, empreendedores em geral, precisarão percorrer um longo caminho de resiliência para prosperar em um ambiente contaminado por vícios antigos do Estado brasileiro.
Retomada no pós-pandemia
O Brasil foi um dos países mais afetados pela COVID-19, e muitas indústrias tiveram suas portas fechadas com a alta paralisação da economia. De acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), mais de 70% das indústrias apresentaram um impacto geral negativo e 40% das empresas paralisadas totalmente na pandemia tiveram que encerrar suas atividades.
Aos poucos a economia é retomada, seguindo todos os protocolos recomendados pelos órgãos de saúde. Em 2021, o Brasil apresentou crescimento de 4,6% do PIB e recuperou mais de 3,7 milhões de empregos. O país ainda conseguiu aumentar em 23% o nível de investimentos estrangeiros.
Sem dúvida, são fatores como esses que possibilitaram que mais de 1 milhão de novas empresas fossem criadas nos três primeiros meses de 2022. Ricardo Teixeira, coordenador do MBA em Gestão Financeira da Fundação Getúlio Vargas (FGV), avaliou que a pandemia provocou grandes turbulências no mercado de trabalho.
Entretanto, "com a retomada que estamos tendo, em vários setores da economia", o Mei funciona como uma alavanca para geração de empregos, "pois ele facilita a contratação sem precisar de vínculos empregatícios".
"Quando alguém presta serviços por Mei, isso facilita o ambiente de negócios. A abertura desses microempreendedores, como atestado pela pesquisa da Contabilizei, significa uma retomada econômica muito importante", pontuou.
O analista econômico defende os empregos gerados por microempreendedores porque, em última análise, eles reduzem os custos para empreender de forma legalizada. "O Mei permite às empresas que já estão funcionando que ampliem o processo de contratação, que ainda que seja temporário ou sem vínculo, era difícil de fazer. Isso trouxe dinamização da economia e desburocratização das relações de trabalho", assinalou.
Entregador de aplicativo circula pela avenida Caxangá, no bairro Iputinga, zona central da cidade de Recife (PE). Foto de arquivo
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Um motor chamado 'serviços'
O crescimento da economia brasileira deve ser puxado principalmente pelo setor de serviços, com uma alta prevista de 1,8% em 2022, segundo o IBGE — o segmento movimentará cerca de R$ 92,8 bilhões a mais frente ao ano anterior. Na prática, essa melhora em andamento acompanha a taxa de desocupação do país, que recuou para 11,2% no trimestre encerrado em fevereiro.
Além disso, houve queda na taxa de subutilização (25%). A população subutilizada passou de 29,1 milhões para 27,3 milhões. Somente o setor de serviços contratou 652 mil pessoas a mais no trimestre encerrado em fevereiro, na comparação com o período anterior. A retomada econômica pós-coronavírus levou também a um recorde histórico na abertura de empresas de grande porte, indústrias e agronegócios.
Como relatado pelo instituto Contabilizei, foram quase 80 mil novos CNPJs nessas categorias ao longo dos quatro primeiros meses do ano. Atualmente são mais de 21 milhões de empresas ativas no Brasil, sendo que o setor de serviços representa 60,2% dos CNPJs do país, enquanto o comércio, 31,2%, e a indústria, 7%.
Juliana Inhasz avaliou esse cenário. Abordando as milhões de empresas ativas no país, de acordo com o levantamento, ela explicou que o setor de serviços tem uma predominância nessas microempresas porque, em geral, o custo de posicionamento no mercado tende a ser menor quando comparado à indústria, que precisa de capital fixo (maquinários, por exemplo).
"Para ser prestador físico, bastam alguns poucos investimentos, sendo o mais relevante a prestação da mão de obra. É por isso que a gente vê muita gente entrando nessa onda. São profissionais liberais, que perderam seus empregos e buscam se realocar", disse a especialista.
Para ela, faz sentido que a indústria seja o setor que menos teve recuperação, "por seu custo de produção", indo o comércio no mesmo sentido, "porque também demanda um custo maior. Essa composição não é uma novidade, dado que o sistema econômico brasileiro depende do setor de serviços".
Nesse sentido, vale lembrar que, segundo levantamento do IBGE, aplicativos de serviços, como Uber e iFood, se tornaram, em conjunto, o maior "empregador" do país, com quase 4 milhões de trabalhadores autônomos que usam as plataformas como fonte de renda. Além de representar mudanças na oferta de serviços, essas aplicações têm acompanhado transformações significativas nas relações de trabalho.