A pressa em impor sanções à Rússia, após o lançamento da operação militar na Ucrânia, foi feita com um cálculo específico: devastar a economia russa. No entanto, em um mundo globalizado, onde tudo está interligado, todas as ações têm consequências. Os bloqueios comerciais contra Moscou provocaram falta de fertilizantes e grãos pelo planeta, agravando a fome e encarecendo produtos.
Nos últimos meses, o retorno da COVID-19 à China provocou um efeito em cascata semelhante. O fechamento dos portos chineses em função do lockdown congestionou o fluxo de mercadorias nos maiores e mais importantes portos do mundo, criando gargalos logísticos. A exemplo do que houve com o Brasil na questão dos fertilizantes, desabastecido dos insumos dada a posição de importador do país, a crise que nos atinge desta vez está no mercado de medicamentos.
O fato é que as farmácias brasileiras e o sistema de saúde do país relatam, em 18 estados e no Distrito Federal, problemas que vão da falta de remédios nas prateleiras das drogarias ao adiamento de cirurgias por desabastecimento de drogas específicas. Segundo o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), uma ausência é comum a todos os estados: a dipirona monoidratada injetável de 500 mg. O remédio é um dos mais usados na rede de saúde, indicado para o tratamento de dor e febre.
A crise tem explicação e solução, garantem Norberto Prestes, presidente-executivo da Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos (Abiquifi), e Sérgio Mena Barreto, CEO da Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma), entrevistados pela Sputnik Brasil para falar sobre o problema em um momento em que os produtos farmacêuticos subiram 6,13% no mês de abril, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Os especialistas concordam que as razões para a falta de remédios nas prateleiras das drogarias e o adiamento de cirurgias por desabastecimento de medicamentos são as dificuldades logísticas e a dependência do Brasil dos mercados externos para a compra de insumos.
"A logística é um problema que dura há dois anos, principalmente em razão da COVID-19. O setor farmacêutico foi muito impactado nos últimos anos", apontou Norberto Prestes. Ao justificar seu argumento para a falta de remédios, ele lembrou que "o Brasil não é rota principal de logística do mundo, representando apenas 2%" dos fluxos globais. Isso, segundo ele, representou um impacto grande para o país, embora não seja a causa principal.
"A região que abrange a logística de comércio no mundo se concentra no hemisfério norte do globo, e nós tivemos problemas com um novo lockdown da China. Isso fez com que as mercadorias ficassem retidas nessa região", comentou.
Complementando o argumento, Sérgio Mena Barreto pontuou que "além da maior dificuldade para a chegada de insumos ao país, tivemos uma espécie de efeito dominó, pois outros produtos que estavam faltando exigiram mais dedicação da indústria, acarretando a redução na fabricação de outros produtos".
Ambos os especialistas consideram que o verdadeiro problema consiste no fato de que "o Brasil importa 95% dos insumos para medicamentos". Norberto Prestes enfatizou que no caso dos antibióticos a situação é ainda pior, pois "não temos nenhuma fábrica". Ele relembrou, por outro lado, que "o Brasil já teve quatro grandes indústrias de antibióticos", que foram fechadas em meio ao processo de desindustrialização em curso no país há décadas.
Reverter essa situação do setor industrial, na avaliação de Norberto Prestes, inclusive é a única saída para que o Brasil contorne o desabastecimento de medicamentos, drogas e insumos. À Sputnik Brasil, ele defendeu "uma política de Estado, permanente, de nacionalização de insumos".
"A gente precisa priorizar a nossa produção, principalmente daqueles [medicamentos] que são críticos para a população brasileira. A gente busca isso com as agências responsáveis, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária [Anvisa], uma articulação para definir essa produção", comentou, ressaltando que há conversas com o governo para que sejam dadas condições para uma retomada industrial no âmbito dos remédios.
Norberto Prestes defende um programa estatal para o setor de medicamentos argumentando que diversos outros países, em especial EUA, Austrália e Índia, tomaram iniciativas para proteger seu mercado de remédios. O governo norte-americano, por exemplo, como apontou o especialista, "está nacionalizando 180 insumos para se tornar independente da China".
"A Austrália está fazendo investimento em produções mais flexíveis de IFA [ingrediente farmacêutico ativo, produzido principalmente pela China], que são mais baratas e têm custo menor. A Índia investiu US$ 8 bilhões [R$ 38,3 bilhões] em seu programa de nacionalização. É uma discussão longa, mas é essencial que aconteça. O Brasil precisa ser minimamente capaz de produzir moléculas quando necessário. Da mesma forma que foi criado um programa para fertilizantes, é preciso um para a indústria farmacêutica."