Proposta de Emenda Constitucional apresentada pelo senador Davi Alcolumbre (União-AP), gera polêmica ao propor que parlamentares assumam embaixadas, sem perder seus respectivos mandatos.
A PEC 24/2021 colocaria à disposição do Congresso cerca de 185 postos no exterior, inclusive a chefia de cargos cobiçados em países como EUA, França, Inglaterra e Portugal.
De acordo com a Constituição Federal, deputados e senadores devem abandonar seus mandatos para assumir missões diplomáticas permanentes, como as embaixadas. Mas, para Alcolumbre, a imposição constitucional é "uma afronta ao bom senso", uma vez que a regra não é aplicada quando parlamentares assumem outros postos no Poder Executivo, como cargos ministeriais.
O chanceler brasileiro, Carlos Franca, discursa com o ministro das Relações Exteriores da Arábia Saudita, príncipe Faisal bin Farhan Al Saud (fora do quadro) no Palácio do Itamaraty, em Brasília, em 25 de novembro de 2021
© AFP 2023 / Evaristo Sá
Alcolumbre não está sozinho. A senadora Daniella Ribeiro (PSD-PB), por exemplo, emitiu parecer favorável à PEC 24/2021, argumentando que parlamentares "conhecem, como poucos, as reais necessidades do Brasil e do seu povo".
"A aprovação da PEC tem a virtude de eliminar essa insustentável discriminação, que atenta contra o princípio isonômico previsto na Constituição", declarou a senadora durante reunião da CCJ no início de julho.
A presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado Federal, Kátia Abreu (PP-TO), não se opôs à PEC, mas defendeu a limitação do número de vagas e do período de exercício do cargo por parlamentares, reportou o jornal O Povo.
Ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Kátia Abreu
© Valter Campanato/ Agência Brasil
Especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil criticaram a proposta do senador Alcolumbre, considerando-a uma tentativa dos parlamentares de expandir seus já fartos privilégios.
"Apenas consigo ver vantagens para os próprios parlamentares", disse o professor adjunto do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal Fluminense Marcio Malta à Sputnik Brasil. "É apenas um privilégio como tantos outros que os parlamentares brasileiros têm."
Para Malta, autorizar que "políticos sem qualquer experiência" assumam embaixadas seria uma forma de abrigar interesses particulares na máquina pública.
O professor de Relações Internacionais da ESPM de São Paulo Leonardo Trevisan concorda, dizendo que "interesses econômicos ficariam muito melhor representados" caso os deputados e senadores que os defendem estivessem presentes nas embaixadas.
"As embaixadas poderão ser chefiadas por parlamentares que defendem interesses de setores específicos, que nem sempre coincidem com os interesses nacionais", disse Trevisan à Sputnik Brasil. "Estamos fazendo uma confusão terrível entre interesses de Estado e de governo, entre interesses públicos e particulares."
Setores do Executivo nacional e da sociedade civil também criticaram a proposta de Alcolumbre. A Casa Civil divulgou nota na qual considera a PEC uma violação das "competências privativas do Presidente da República", que tem a prerrogativa de indicar chefes de missões diplomáticas.
Segundo Trevisan, o presidente deve ter a palavra final, uma vez que "por trás da política externa temos uma situação de extrema sensibilidade, que é a eventual declaração de guerra".
O presidente brasileiro Jair Bolsonaro, em Los Angeles, 10 de junho de 2022
© AP Photo / Marcio Jose Sanchez
"Considerando, principalmente, a incompatibilidade no exercício entre a função diplomática e a manutenção em harmonia do sistema de tripartição de Poderes, sugere-se posição contrária à PEC nº 34/2021", versa a nota da Casa Civil.
Posição do Itamaraty
Após período de silêncio, o Ministério das Relações Exteriores se pronunciou em nota sobre a proposta de Alcolumbre, notando a "potencial repercussão que sua aprovação poderia trazer para a política externa brasileira, o equilíbrio entre os Poderes e o pacto federativo".
"A Constituição Federal atribui papel fundamental ao Poder Legislativo na área de política externa, inclusive na aprovação ou rejeição de acordos internacionais e na sabatina e aprovação de embaixadores, ente outros", lembrou o Itamaraty na nota. "A Constituição, ao mesmo tempo, outorga ao Poder Executivo Federal a competência privativa para manter relações com Estados estrangeiros e celebrar tratados. É essa a prática nos Estados democráticos de direito em que impera o princípio da separação e equilíbrio dos Poderes."
Para Malta, é importante manter o papel do Itamaraty e dos diplomatas de carreira como alicerces da política externa brasileira.
"Historicamente, o Itamaraty teve uma trajetória de autonomia. Muitas das vezes em que a política externa foi traçada de uma forma errônea, a despeito da tradição brasileira [...] os diplomatas tinham a prerrogativa de ter a palavra final", notou o especialista.
Ele atenta que negociações internacionais são processos complexos e de longo prazo, que exigem quadros "extremamente especializados": "Então não podemos aceitar que políticos de carreira, visando somente seus interesses particulares, ocupem embaixadas", disse Malta.
A nota do Itamaraty lembra que parlamentares já chefiaram embaixadas com sucesso, mas sempre "o ex-parlamentar é servidor do Poder Executivo Federal, subordinado ao Presidente da República".
Atualmente, nenhum parlamentar ocupa a chefia de embaixada ou consulado. No entanto, Jair Bolsonaro nomeou o ex-ministro do Tribunal de Contas da União Raimundo Carreiro Silva como embaixador do Brasil em Lisboa e o general da reserva Gerson Menandro como embaixador do Brasil em Tel Aviv.
O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) durante discussão com representantes do setor de telecomunicações sobre a tecnologia 5G, na Câmara dos Deputados, em Brasília (DF) (foto de arquivo)
© Folhapress / Pedro Ladeira
Além disso, o presidente tentou emplacar o ex-prefeito do Rio de Janeiro Marcello Crivella para a embaixada na África do Sul e seu próprio filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), para a embaixada nos EUA. No entanto, nenhuma das indicações prosperou.
Política externa democrática
Apesar da importância da carreira diplomática para a condução previsível da política externa, o Itamaraty é frequentemente criticado por monopolizar o debate e permitir pouca participação da sociedade civil no processo.
Rodrigo Pacheco no Plenário do Senado, 3 de maio de 2022
© Foto / Agência Senado / Waldemir Barreto
Nesse sentido, a ampliação da participação do Congresso poderia ser bem-vinda, para democratizar a discussão sobre política externa no Brasil.
"O saudável debate sobre a política externa deve ampliar-se a outros segmentos da sociedade brasileira e dar lugar a um processo deliberativo ponderado e respeitoso do marco constitucional pátrio", versa a nota do Itamaraty sobre a PEC 34/2021.
Trevisan concorda que a política externa brasileira deveria ser debatida por um espectro mais amplo de atores, mas não acredita que esse seja o intuito da PEC de Alcolumbre.
"Se esse fosse um debate institucionalizado, aí eu diria que seria uma inciativa bem-vinda e caberia a todos nós aplaudir", disse Trevisan. "Mas não acho que esse seja o intuito desta PEC, que trata de um ponto muito específico, que é a possibilidade de ocupar cargo de embaixador sem perder o mandato parlamentar."
Segundo ele, o Brasil poderia debater a adoção de sistemas como o dos EUA, no qual as comissões de Relações Exteriores das casas do Congresso são "muito poderosas, e praticamente formulam a política externa norte-americana".
Pedido de vistas
A oposição de setores do governo e da sociedade civil parece ter surtido efeito, e a votação da PEC 34/2021 está, por enquanto, suspensa. Os senadores Carlos Portinho (PL-RJ), Espiridião Amim (PP-SC) e Humberto Costa (PT-PE) pediram mais tempo para analisar o projeto.
"Essa PEC gerou uma situação rara no Senado, que foi a união de diferentes correntes políticas para evitar a aceleração da tramitação do projeto na CCJ", notou Trevisan.
No entanto, o especialista alerta que é cedo para desconsiderar uma reviravolta e a aprovação da PEC dos Embaixadores.
"Temo que certos senadores possam considerar o potencial eleitoral de certas medidas e se interessarem em aprovar esse projeto", declarou Trevisan. "Eles podem ouvir o canto das sereias, em um período no qual as emendas parlamentares ainda estão abertas, mesmo a cerca de 80 dias das eleições."
Para o especialista, a sociedade civil deve "ficar de olho" na tramitação da PEC, uma vez que os senadores interessados na sua aprovação "não vão desistir tão fácil".
A PEC 34/2021, que propõe que parlamentares assumam a chefia de embaixadas sem perder o mandato, foi apresentada pelo senador Davi Alcolumbre (União-AP). Emendas Constitucionais precisam ser aprovadas em dois turnos, em ambas as casas do Congresso Nacional, por 49 votos favoráveis no Senado e 308 na Câmara dos Deputados.