Panorama internacional

Eleições, soja francesa e Rússia: os interesses da UE em negociações por acordo com Mercosul

Especialista consultado pela Sputnik Brasil alerta que possível avanço das negociações entre o Mercosul e a União Europeia será benéfico apenas para os europeus, em um cenário de fortalecimento da China e da Rússia e de desindustrialização sul-americana.
Sputnik
A crise nas cadeias alimentícias globais pode levar a uma nova aproximação entre a União Europeia (UE) e o Mercosul. Em meio ao conflito na Ucrânia e aos bloqueios comerciais à Rússia, representantes europeus voltaram a dialogar com o Itamaraty e com o Ministério da Economia do Brasil a fim de avançar nas negociações do acordo econômico entre os blocos.
Segundo duas fontes com conhecimento do assunto citadas pela Reuters, o indicativo de retomada das conversas após uma série de entraves é visto no governo brasileiro como uma sinalização da mudança das perspectivas mundiais, que teria ampliado o poder do Brasil nas negociações.
Desde o ano passado, a União Europeia passou a articular a possibilidade de uma proposta de carta complementar ao acordo original, com demandas na área ambiental, em contraposição ao governo do presidente Jair Bolsonaro. A proposta, porém, nunca chegou realmente a ser enviada.
Ainda segundo a Reuters, integrantes do governo recentemente realizaram uma conversa preliminar com emissários do bloco europeu e confirmaram que uma nova reunião está prevista para ocorrer até o fim de setembro. O objetivo será traçar um cronograma de encontros.

"Essa discussão estava enterrada. Eles voltaram a discutir o acordo entre Mercosul e União Europeia justamente porque precisam de commodities agrícolas, minerais e energéticas. Não podem contar mais com a Rússia, há o problema da disrupção da cadeia de suprimentos, excessiva dependência da Ásia", disse a fonte.

A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, na sede da União Europeia, em Bruxelas, Bélgica, em 14 de abril de 2021. Foto de arquivo
A movimentação da UE mostra que a questão sempre foi mais política e econômica do que ambiental? A atual crise levará, de fato, a avanços concretos para a ratificação do acordo?
Para Fábio Sobral, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) nos cursos de economia ecológica e de ciências econômicas, o mundo vem assistindo a um avanço do protecionismo econômico desde a crise de 2008.
Após um período de alianças globais, apenas um acordo de peso saiu do papel desde então: a Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP, na sigla em inglês), tratado de livre-comércio asiático e oceânico que envolve China, Japão, Coreia do Sul e Austrália.

"De modo geral, os demais acordos têm se restringido ou estão sendo de país a país", disse Sobral à Sputnik Brasil.

De acordo com o especialista, paralelamente ao protecionismo mundial, os membros do Mercosul têm se desindustrializado e estão com uma estrutura cada vez menos competitiva com produtos europeus.
Por isso ele afirma que, em uma eventual concretização do acordo, os produtos do Mercosul não vão conseguir competir "tão acirradamente" com os europeus.
"Para a UE, é benéfica a aproximação com o Mercosul por obter vantagens na exportação de bens industriais, competindo em melhores condições, inclusive, com os manufaturados chineses", avaliou.
O jornal espanhol El País publicou nesta quinta-feira (18) que o avanço econômico e diplomático da Rússia e da China na América Latina tem gerado preocupação na UE. Por isso o bloco estaria preparando uma ofensiva na região para tentar retomar sua influência.
De acordo com a publicação, Bruxelas avalia que o afastamento europeu das Américas nos últimos anos, devido a questões envolvendo países como a Líbia, a Síria e, agora, a Ucrânia, abriu um vácuo que permitiu que Pequim e Moscou estreitassem laços com os países da região.
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A última reunião do G7 revelou as intenções do grupo dos países ocidentais de reaproximação com o continente americano. Em resposta a investimentos de China e Rússia, o G7 informou que pretende mobilizar US$ 600 bilhões (R$ 3,1 trilhões) em projetos globais, principalmente para América Latina e África.
Apesar do interesse sul-americano em receber investimento estrangeiro, Sobral afirma que uma unidade com a União Europeia "seria o aprofundamento de um processo já negativo para o Brasil", que sofre com a redução da importância da indústria no produto interno bruto (PIB).

"A entrada de concorrentes externos significaria uma aceleração ou aprofundamento desse processo. Não temos uma política de recuperação da capacidade industrial, de proteção das universidades, da capacidade de pesquisa em vários setores", disse.

Segundo ele, o Brasil se restringe cada vez mais a produtos primários, com a exportação de minério, ferro e petróleo não refinado, por exemplo.

"O Brasil recua nos processos de industrialização e de produção de inovações. Por isso a construção dessa unidade seria a continuidade de um projeto de desmonte do parque industrial brasileiro, de desmonte da capacidade de conhecimento das universidades, e uma subserviência cada vez maior ao setor agrário, mineral e exportador", afirmou.

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Soja francesa poderia gerar conflito?

Em meio a questionamentos sobre o papel geopolítico das unidades comerciais, o professor aponta a possibilidade de um conflito comercial no setor dos produtos primários entre Brasil e França.
Ele explica que o aquecimento global tem feito aumentar a viabilidade do plantio de soja em regiões francesas. O crescimento da oferta francesa poderia esbarrar nos interesses do Brasil, já que cerca de 10% da soja brasileira é exportada para a UE atualmente.

"Se [a demanda] for atendida internamente, poderia ser um dos alvos da França, na tentativa de suprir o mercado europeu. Mas é só uma possibilidade", alertou.

Produtores rurais em Campo Mourão, no Paraná, em colheita de soja, no dia 15 de fevereiro de 2022. Foto de arquivo

Preocupação ambiental?

A preocupação ambiental tem sido alegada por políticos europeus para justificar a resistência à ratificação do acordo UE–Mercosul. Segundo Sobral, embora seja uma questão "sensível" para o "público eleitoral" na Europa, as grandes corporações europeias, por sua vez, vivem "contradições internas muito fortes".
Ministros das Relações Exteriores dos países-membros do G7 caminham com Josep Borrell (na ponta direita), chefe da diplomacia da União Europeia, em encontro no dia 12 de maio de 2022. Foto de arquivo
O especialista destaca que essas corporações são beneficiárias do desmatamento, pois são "em grande parte" empresas de fundos de investimento, com participação de capital europeu. O professor indica que essas companhias se beneficiam da exploração predatória, com importação de carne impulsionada pelo desmatamento para a criação de gado, por exemplo.

"As corporações têm muita resistência ao tema ambiental. Há contradições internas muito fortes. Não há unidade na Europa sobre o tema. Há a preocupação do público eleitoral e a resistência das corporações europeias em agir ambientalmente em países fora da Europa", resumiu.

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