'Há margem para expansão': como Brasil pode aproveitar aquecimento do comércio com vizinhos?
Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisaram a mudança de eixo da agenda comercial brasileira, destacando o bom momento e o potencial de crescimento nas trocas com outros países da América do Sul.
SputnikAs exportações do Brasil para países da América do Sul aumentaram de maneira significativa nos últimos meses. Segundo um recente levantamento da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), as exportações do país para vizinhos cresceram em 2021, 64,7% a mais em relação ao ano anterior. E, ao que tudo indica, esse avanço deve continuar neste ano, uma vez que, já no primeiro semestre, foi registrado um superávit de US$ 6,2 bilhões (R$ 31,7 bilhões) nas exportações para os países vizinhos.
Para entender o que contribuiu para esse aquecimento e que proveito o Brasil pode tirar dessa tendência, a Sputnik Brasil conversou com Lia Valls, pesquisadora associada do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da Fundação Getulio Vargas (FGV), Fábio Sobral, economista e professor da Universidade Federal do Ceará (UFC), e Lucas Bispo, mestre em relações internacionais e consultor de política na Prospectiva Consultoria.
Lia Valls afirma que estreitar laços comerciais com vizinhos "faz parte da agenda de liderança regional que o Brasil sempre buscou", acrescentando que "é natural que o comércio seja maior entre parceiros geográficos" por uma questão de logística. Porém ela destaca que, quando se avalia exportações, é preciso estar atento à relação entre quantum e preços. O primeiro é o indicador do volume de exportações, enquanto o segundo representa o valor dos produtos. Ela afirma que o aumento real é medido pelo quantum.
"A gente trabalha com volume, porque às vezes o aumento é só [no] preço. Na América do Sul, o quantum [das exportações brasileiras] cresceu 34% e os preços 17%. Então, em termos de volume, para a América do Sul o crescimento foi bem maior [em 2021 em relação a 2020]", explica Valls.
Nesse ponto, ela destaca a importância da parceria comercial com a Argentina. "Se eu olho para a América do Sul, com dados de janeiro a julho de 2022, o principal país é a Argentina, que foi o destino de 36% do que o Brasil exportou", explica a pesquisadora, acrescentando que muitas dessas exportações "foram puxadas pelo setor automotivo".
Além da Argentina, outro país que registrou um bom número para as
exportações brasileiras foi a Venezuela. Em 2012, o fluxo das exportações brasileiras para o país superava a marca de US$ 5 bilhões (R$ 25,6 bilhões). Com a crise econômica e política na Venezuela, esse fluxo caiu, chegando a US$ 420 milhões (R$ 2,1 bilhões) em 2019. Porém, em 2021, as exportações brasileiras para o país chegaram à marca de US$ 1 bilhão (R$ 5,1 bilhões).
Questionado sobre esse avanço, Sobral aponta que a crise entre Rússia e Ucrânia abriu uma janela de oportunidade a Caracas.
"A Venezuela tem superado o bloqueio cambial que ela sofreu por parte dos EUA e do Reino Unido. Ela teve reservas em ouro apreendidas pelo Reino Unido de forma ilegal, teve pagamentos de petróleo não realizados, sofreu ataques especulativos contra sua moeda, fazendo com que se desvalorizasse imensamente. Essa é a origem central da crise venezuelana", destaca Sobral, acrescentando que "o país, no entanto, tem conseguido romper esse bloqueio cambial, inclusive com a ajuda do Irã, que permitiu que ela retomasse sua extração de petróleo".
"O Irã ajudou com o fornecimento de produtos químicos, já que o petróleo venezuelano é pesado e precisa de produtos químicos que possibilitem sua dissolução e sua extração. Ao mesmo tempo, com a crise na Ucrânia e uma possibilidade de colapso de abastecimento no setor petrolífero mundial, o petróleo venezuelano já não pode ser desprezado. Isso traz novamente a Venezuela ao mercado e permite que ela respire. Sua moeda vai ganhando novamente espaço, sua capacidade de importação aumenta e ela volta ao jogo das relações comerciais entre os países", explica Sobral.
Lucas Bispo concorda que a reaproximação comercial entre Brasil e Venezuela é fruto da mudança na conjuntura política global. Segundo ele, nos anos que se seguiram ao impeachment de Dilma Rousseff, "o Brasil reorientou em boa medida o eixo da política externa que vinha tendo nos últimos anos",
estreitando laços com os EUA e com a Europa. Porém a ascensão de Joe Biden à presidência americana e o conflito na Ucrânia levaram o país a alterar novamente seu eixo.
"Dessa maneira, tanto o contexto atual da Venezuela, que estaria indicando uma possível, ainda que tímida, recuperação econômica do país, como a necessidade de diversificação dos parceiros econômicos do Brasil, podem explicar o aumento dos números recentes da relação comercial entre Brasil e Venezuela", explica Bispo.
Ele acrescenta que "na mesma linha, o contexto de incertezas gerado pelo pós-pandemia e pelo conflito na Ucrânia, além do próprio contexto econômico e político brasileiro, abrem a necessidade de que o país aposte em parcerias comerciais diversas".
"Dessa forma, o Brasil, já possuindo toda uma estrutura institucional, comercial e diplomática, através do Mercosul, que o aproxima dos países vizinhos, em momentos de crise com eixos como a União Europeia e os Estados Unidos, se serve desse arcabouço para ter acesso a mercados, de certa forma, já conquistados. Nesse sentido, a estratégia de retomar a aproximação com a região faz sentido neste momento", diz Bispo.
Lia Valls, por sua vez, tem uma visão pragmática sobre o aumento das exportações para a Venezuela. Segundo ela, embora tenham aumentado, os números ainda são muito baixos.
"Essa cifra de US$ 1 bilhão [R$ 5,1 bilhões, registrada em 2021] não é nada para o Brasil em termos de exportação. A gente exportou muito para a Venezuela em 2011, quando o país também estava beneficiado pelo boom das commodities. Depois as exportações começaram a cair não só por uma questão das relações bilaterais, mas pelo fato de o país estar em uma situação econômica muito complicada, de crescimento muito baixo, mesmo negativo", diz a pesquisadora.
Valls argumenta que, entre os países da América do Sul, a Venezuela é um dos que menos importam produtos do Brasil. Ela aponta que, além da Argentina, que representou 36% das exportações brasileiras entre janeiro e julho, "os principais países [importadores] foram Chile (21%), Colômbia (11%), Peru e Paraguai (ambos com 7,8%), Uruguai (6,9%), Bolívia (4,6%) e Venezuela (2,9%)".
A pesquisadora destaca que a parceria comercial com a Argentina tem peso maior para a economia brasileira. No entanto, alerta que esse cenário "pode não se sustentar nos próximos meses", uma vez que a Argentina está sendo afetada por uma turbulência política e econômica. "Ela [Argentina] pode ter de impor uma série de restrições às exportações", diz Valls.
Questionado sobre se há espaço para o Brasil ampliar e diversificar suas exportações para os países vizinhos, Sobral afirma que "há margem para expansão no cenário atual", especialmente nos
setores de manufatura e commodities, que sempre foram o carro-chefe das exportações brasileiras.
Porém ele alerta para a necessidade de proteger o mercado interno. Segundo ele, o aumento das exportações sem mecanismos que garantam o abastecimento interno pode agravar a insegurança alimentar no país.
"Seria jogar contra a população brasileira. Para contornar isso, seria necessário, inclusive, fomentar a agricultura familiar, para que ela abasteça o mercado interno. Isso exigiria um novo tipo de propriedades menores, não grandes latifúndios, que têm sido basicamente os donos dessas exportações internacionais", explica Sobral.
Ele acrescenta que "a ampliação da disputa por alimentos produzidos no Brasil pode ser positiva na medida em que permitiria aumentar as exportações. Mas se não houver controles internos que garantam a segurança alimentar da população brasileira, isso iria agravar um problema que já existe hoje".
Lucas Bispo avalia que "a expansão comercial na região pode ocorrer tanto através do agronegócio como através da indústria, já que o Brasil possui histórico de exportação de produtos com maior nível de industrialização para a região".
"Por isso há uma parcela importante do empresariado que enxerga no Mercosul, e nos países vizinhos em geral, um mercado necessário de se manter minimamente próximo. Ainda mais quando a presença chinesa é cada vez maior em mercados antes vistos como cativos, caso da Argentina e do Chile, por exemplo. Assim, há espaço para expansão das exportações no continente, mas ela não será feita sem percalços", destaca o especialista.
Ele finaliza afirmando que o que vai definir os próximos passos da agenda comercial do Brasil são as eleições presidenciais.
"Caso o ex-presidente [Luiz Inácio] Lula [da Silva] seja eleito para um terceiro mandato, há grande possibilidade de que a reaproximação do Brasil com os países da América do Sul cresça, seja pela via comercial, seja através do fortalecimento dos blocos regionais, como o próprio Mercosul ou a retomada das atividades da União de Nações Sul-Americanas [Unasul]. Caso Jair Bolsonaro seja reeleito, porém, a tendência é que o diálogo com os países sul-americanos siga o modelo atual de distanciamento, em que pese a possível pressão de uma parcela do empresariado pela retomada dos vínculos comerciais com os países vizinhos", diz Bispo.