Atentado a Kirchner não é isolado na América Latina e deve servir de alerta, dizem analistas
09:00, 4 de setembro 2022
A tentativa de assassinato da vice-presidente da Argentina, Cristina Fernández de Kirchner, reascendeu um debate sobre a violência política na América Latina. Para analistas, há um paralelo direto do episódio com o cenário brasileiro, de embate eleitoral entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o presidente Jair Bolsonaro (PL).
SputnikEspecialistas ouvidos pela Sputnik Brasil apontam que
atentado não deve ser visto como um caso isolado e faz parte de um processo de
acirramento de ânimos que tem afetado a região.
O processo eleitoral brasileiro de 2022, inclusive, pode ter ajudado no aumento das tensões sentida no país vizinho nas últimas semanas.A
tentativa de assassinato de Kirchner por um neonazista, a onda de violência desencadeada pelo golpe que abalou a Bolívia em 2019, a
tentativa de assassinato do presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, o
magnicídio do presidente do Haiti, Jovenel Moïse, o aumento das mortes de lideranças sociais na Colômbia e no México, a morte da vereadora Marielle Franco em 2018 no Rio de Janeiro, a facada contra o presidente Jair Bolsonaro (PL) na campanha eleitoral de 2018, o
assassinato de um dirigente do PT por opositor político em festa de aniversário e a
necessidade de reforço na segurança do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na campanha de 2022 por determinação da Justiça Eleitoral são apenas alguns exemplos dessa onda de violência que abala o subcontinente.
O clima de hostilidade na eleição brasileira deste ano já é evidente, com alguns candidatos sendo vítimas de ameaças até mesmo com arma de fogo. Um desses alvos foi o advogado Rodrigo Mondego, que integra a comissão de direitos humanos da seção do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e que concorre a deputado estadual pelo PT.
Mondego teve uma arma apontada para sua cabeça ao sair do comitê de campanha do candidato a governador Marcelo Freixo (PSB). Um homem — identificado como o policial penal aposentado Marcelo Rocha de Miranda — disse para Mondego "ficar ligado" e o chamou de "defensor de bandido petista". O caso corre na Justiça.
"Esse clima de hostilidade já é um recorte dessa eleição. Eu, como candidato, já fui duas vezes ameaçado durante esse processo. O recorte de violência já tem aqui. Dá para dizer que a gente está exportando essa forma agressiva de lidar com a política", disse Mondego, lembrando também do assassinato de Marcelo Arruda.
Para a socióloga Giovanna Zucatto, pesquisadora do Núcleo de Estudos de Teoria Social e América Latina (NETSAL) e do Observatório Político Sul-Americano (OPSA) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), a violência que nunca deixou de existir na América Latina — em especial em países como Colômbia, México —, agora foi para o front a partir de um entendimento das elites de que a forma de evitar que as lideranças populares tenham poder é através da violência.
"O fato novo, portanto, é essa violência ir para o front da política, com os grandes partidos alimentando-a em razão de um entendimento de que as lideranças políticas populares só vão ser impedidas através da violência. E isso é um fato que me parece que vai demorar muito para ser contornado", avalia a pesquisadora do OPSA.
"A gente pode localizar o início disso em 2012, com o golpe que tirou o [ex-presidente Fernando] Lugo no Paraguai, passando por 2016 com a crescente de violência contra [a ex-presidente] Dilma [Rousseff], alvo de extrema misoginia", avalia.
Radicalização na Argentina e no Brasil
A pesquisadora acredita que há nas conjunturas políticas de Brasil e Argentina uma grande aproximação, diante de uma radicalização de setores da direita e uma perseguição jurídico-política contra lideranças populares nesses países. Isso permitiu uma escalada de violência de uma forma nova em dois países que, segundo ela, a tradição política pós-redemocratização não envolvia confrontos físicos tão evidentes. "Isso é um fato alarmante que está muito ligado com a radicalização da direita. Há partidos grandes alimentando essa violência em conluio com a mídia e com o Judiciário", disse Zucatto.
A especialista acredita, inclusive, que
o bom desempenho de Lula nas pesquisas eleitorais brasileiras fez com que os setores anti-kirchneristas adotassem uma estratégia mais radical para tentar impedir que aconteça o mesmo.
A ideia, para Zucatto, é a de aniquilar a ex-presidente. Isso, segundo ela, se expressa no atentado de quinta-feira (1º) e na denúncia apresentada pelo Ministério Público que pede a
cassação eterna dos direitos políticos da vice-presidente.
"Lula foi preso, voltou e agora vai ganhar a eleição. Então, a direita argentina percebe que não adianta prender, tem que aniquilar o inimigo, sendo judicialmente, cassando os direitos políticos a vida inteira, ou aniquilando ele, matando."
Segurança de Lula em risco
Diante disso, o atentado contra Kirchner torna-se ainda mais alarmante no Brasil, em especial para Lula, que já foi colocado no nível de risco mais alto pela Polícia Federal (PF). Para o policial civil Leonel Radde, integrante do do movimento Policiais Antifascistas, "o atentado deve ser considerado um alerta". "Aqui no Brasil o tempo todo há uma instigação para esse tipo de violência", afirmou. "Eu não tenho dúvidas que há um risco real para Lula, mas não só para ele", aponta Radde.
Essa tensão é sentida também na campanha do ex-presidente Lula.
Segundo o jornal O Globo, a segurança do candidato foi reforçada no ato de sexta-feira (2) no Maranhão. Integrantes da cúpula da campanha já admitiram preocupação com o atentado sofrido por Cristina Kirchner. "
Causou preocupação, sim, foi conversado na campanha. O ex-presidente tem um esquema muito organizado de segurança, tanto da PF (Polícia Federal) e também o sistema dele, que vão analisar a situação",
disse o deputado Paulo Teixeira (PT-SP), um dos subcordenadores da campanha de Lula, à agência Reuters.
Durante o comício, o próprio ex-presidente — que tem usado colete à prova de balas nos atos com grande público — disse que ficou preocupado com o atentado: "O bom senso indica que precisamos ficar alertas com o que pode acontecer no Brasil, porque nós temos visto... Todo dia na imprensa tem uma insinuação, e quem faz insinuação pode cumprir aquilo que está prometendo".
Mondego acredita que a "a segurança do Lula nunca foi tão rígida quanto agora, nem quando era presidente da República", mas mesmo assim entende que não é o bastante. O advogado entende que a necessidade de reforço dos esquemas de segurança dificulta a forma de fazer campanha.
"Lula tem que mudar mais do que ele está mudando. Agora já vemos os comícios em lugares fechados, a questão do gradeamento, ele não fica tanto no meio de todo mundo quanto antigamente... Isso é uma diferença do que era antes, mas muita gente avalia que não é o suficiente e ainda existe um risco que ele corre", aponta o advogado.
Radde também acredita que as medidas tomadas estão aquém do necessário, mas enxerga as mudanças como positivas.
"É quase impossível conseguir eliminar 100% a chance desse tipo de atentado. O máximo que se consegue é reduzir em grande escala essa possibilidade e isso se dá através da separação das lideranças com massas. No processo eleitoral é difícil afastar os candidatos do contato físico, mas esses eventos têm que acontecer em locais controlados, com acesso de público com detector de metais, com checagem. Caso contrário, o risco é altíssimo nesse processo eleitoral", avalia o policial.
Radicalismo tipo exportação?
Segundo Zucatto, a direita argentina tem adotado táticas muito próximas das utilizadas pelos radicais brasileiros. A simbologia da violência tem ficado cada vez mais presente, com pedidos de pena de morte para a ex-presidente Cristina Kirchner e a utilização de sacos funerários em protesto contra expoentes do peronismo, em fevereiro de 2021. Sedes do movimento La Cámpora, próximo de Kirchner, também têm sido alvo de ataques a bomba e incêndios nos últimos anos.
"Ainda que a Argentina seja uma sociedade altamente dividida politicamente — tem até o nome para isso, la grieta [polarização entre kirchneristas e antikirchneristas] — essa escalada é um fato novo desde a redemocratização, mas que já vinha sendo anunciado"
A maneira de se manifestar em uma democracia não pode ser a de exibir sacos funerários em frente à Casa Rosada com os nomes dos líderes políticos. Esta ação infeliz só mostra como muitos opositores concebem a República. Não fiquemos calados diante de tal ato de barbárie.
Conforme destacou o jornalista e analista político Fabian Restivo em
entrevista recente à Sputnik Brasil, houve uma escalada na radicalização da direita argentina nas últimas semanas, tornando o cenário mais propício a um atentado.
Oposicionistas passaram a defender abertamente a repressão a peronistas e a vocalizar um discurso de uma "luta" entre "nós e eles". "Os kirchneristas têm que saber que com a gente não se mexe", declarou a ex-ministra Patricia Bullrich, presidente do partido Pro — do ex-presidente Mauricio Macri.
"É muito próximo do que a direita bolsonarista tem feito. Não é coincidência, eles compartilham dos mesmos repertórios, métodos, e, provavelmente, estão atuando em redes", destaca Zucatto.
"É impressionante como a direita na América Latina se radicaliza com o bolsonarismo. É notável a radicalização dos setores macristas. Esse atentado à Cristina é só ponta do iceberg. As pessoas se sentem instadas a usar da violência, da aniquilação. Veem o inimigo politico como algo a ser aniquilado", afirma a especialista.
O grau de tensões estava tão elevado que o deputado governista Máximo Kirchner, filho da vice-presidente, disse horas antes do atentado que algum episódio de violência poderia acontecer.
“Eles [da oposição] estão vendo quem mata o primeiro peronista, quem bate no primeiro garoto ou na primeira garota, quem recebe um distintivo de caubói e essas coisas geralmente acabam muito mal", disse Máximo em razão do aumento da repressão policial nos estados governados pela oposição.