Eleições 2022

Visões 'antagônicas': regulamentação das armas será tema central de segurança no próximo governo

A segurança pública é novamente tema relevante nas eleições presidenciais brasileiras. Com propostas distintas dos principais candidatos à Presidência para questões como o acesso às armas de fogo, policiamento e combate ao crime, o tema segue dividindo opiniões. A Sputnik Brasil ouviu especialistas da área para discutir a questão.
Sputnik
A discussão em torno da segurança pública é uma questão permanente no Brasil, devido aos altos índices de homicídios, estupros, roubos, desigualdade social, encarceramento e violência doméstica e policial. Apesar do foco na pauta econômica nas eleições presidenciais deste ano, a questão da segurança também suscita debates importantes entre os presidenciáveis.
Em seus planos de governo apresentados ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), os dois candidatos que lideram as pesquisas de intenção de voto, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Jair Bolsonaro (PL), apresentam propostas com olhares distintos para a questão.
Lula propõe implementar medidas com base na priorização da prevenção e da investigação, além de políticas públicas específicas para as populações vulnerabilizadas e combate à violência contra mulheres, a juventude negra e a população LGBTQIA+. Nesse sentido, o plano cita a intenção de modernizar as instituições de segurança e as carreiras policiais, assim como de mecanismos de fiscalização e supervisão da atividade policial.
Já Bolsonaro aponta a manutenção da defesa da ampliação do acesso civil às armas de fogo, cita a pretensão de uso de tecnologias como drones e inteligência artificial para o combate ao crime organizado e acena aos órgãos de segurança pública com propostas de valorização de carreira e apoio à implementação do chamado "excludente de ilicitude", que reduz a possibilidade de punição por mortes causadas por policiais — o que é visto por especialistas e movimentos sociais como uma espécie de licença para matar.
Ambulante vende bandeiras de Jair Bolsonaro e Lula no mesmo "varal" na cidade de Santos, em São Paulo, em 25 de janeiro de 2022
O cientista político Paulo Baía, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), aponta à Sputnik Brasil que Lula e Bolsonaro "têm abordagens absolutamente distintas e antagônicas sobre a questão da segurança pública".
Para Baía, a principal diferença está na questão do armamento da população, amplamente promovida no governo Bolsonaro a partir dos decretos 10.627, 10.628, 10.629 e 10.630, que regulamentaram a Lei 10.826/03 — o chamado Estatuto do Desarmamento, criado na gestão de Lula —, ampliando o acesso às armas no Brasil. Um levantamento do Instituto Sou da Paz em parceria com a emissora GloboNews apontou que o número de brasileiros com licença Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador (CAC) saltou de 167.390 em julho de 2019 para 605.313 em março deste ano.
Para o pesquisador Paulo Baía, Bolsonaro aprofundará a atual política de armas em um eventual segundo mandato, mantendo a tese de que "a população armada pode reagir contra a violência e contra a criminalidade".
"Com Bolsonaro ganhando nós teremos o aprofundamento da visão desses últimos quatro anos, que é o aumento do armamento da população e o avanço da desobrigação da responsabilidade criminal na ação das polícias com o excludente de ilicitude — o que aumentará a letalidade nos casos de abordagem policial. Enfim, você terá uma política que será o desdobramento desta que nós tivemos de 2019 até agora", afirma o pesquisador.
Em caso de retorno de Lula ao Planalto, o pesquisador Paulo Baía vê uma tendência oposta, na direção da reversão da política armamentista do governo Bolsonaro. "O Estatuto do Desarmamento será reativado por Lula e os decretos de Bolsonaro que permitem compras de armas certamente serão revogados", aponta.
O presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, acompanhado de deputados favoráveis a projetos de flexibilização do controle de armas, durante assinatura de decreto presidencial que flexibiliza regras para colecionadores de armas, atiradores esportivos e caçadores (CACs), em Brasília, em 7 de maio de 2019

Liberação de armas fortalece organizações criminosas

O cientista político Daniel Hirata, pesquisador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos, da Universidade Federal Fluminense (GENI/UFF), avalia que o avanço da liberação de armas no Brasil impulsiona organizações criminosas.
O especialista em segurança pública é um dos responsáveis pelo Mapa dos Grupos Armados, em parceria com o Instituto Fogo Cruzado. Os dados do levantamento mostram que entre o primeiro triênio (2006–2008) da série histórica e o mais recente (2019–2021) as milícias expandiram em 387% as áreas sob o seu controle no Rio de Janeiro.

"A gente tinha conseguido avançar no controle de armas e munições com o Estatuto do Desarmamento, que foi desmontado. E isso produz efeitos que são muito ruins para a segurança pública em geral, porque fortalece as organizações criminosas", afirma à Sputnik Brasil, citando que as milícias e facções criminosas se beneficiam do acesso facilitado às armas.

Hirata ressalta que além do fortalecimento de grupos criminosos, a facilitação do acesso às armas no Brasil também está relacionada ao aumento do número de crimes comuns, como homicídios e feminicídios.

"É muito importante que a gente consiga lidar com mais seriedade nesse tema, regulando o mercado de armas, trazendo para a frente as questões relativas à fiscalização, à concessão de porte e posse de armas — tudo o que foi desregulamentado nos últimos anos", aponta.

Encarceramento em massa provavelmente continuará

Não é segredo no Brasil que as prisões são precárias. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil tem atualmente 820.689 pessoas presas. Isso faz do país o terceiro colocado em número absoluto de presos no mundo, atrás apenas da China e do líder Estados Unidos. Daniel Hirata aponta que a política de encarceramento massivo no Brasil tem como alvo principal a população jovem e negra e ressalta que cerca de 40% dessas prisões são provisórias.

"Isso tem se mostrado um verdadeiro celeiro de recrutamento de jovens para a criminalidade organizada. As pessoas são presas, em quase 40% dos casos provisoriamente, antes do julgamento e por crimes que são de menor potencial ofensivo, mas dentro das prisões acabam sendo arregimentados para trabalhar nesses grupos e passam a conviver com uma situação desumana. [...] Tudo isso me parece que enfraquece as instituições de Estado e fortalece os grupos criminais no Brasil", aponta Hirata.

Paulo Baía salienta que a política de encarceramento em massa no Brasil gerou uma explosão das taxas de encarceramento nos últimos 30 anos. Para ele, a política do governo Bolsonaro nesse aspecto é semelhante às dos governos anteriores, inclusive as das gestões petistas de Lula e Dilma Rousseff. "Se Lula vence, não creio que haja uma mudança na política de encarceramento; ela continuará", afirma, acrescentando que o mesmo deve ocorrer em um eventual segundo mandato de Bolsonaro.
Policiais da tropa de choque entram na Cadeia Pública Raimundo Vidal Pessoa, em Manaus, no Amazonas
Apesar disso, o pesquisador acredita que há diferenças nessa abordagem. Segundo ele, o pensamento de segurança pública dos formuladores do programa do PT está imbricado com a ideia de que a melhora nas condições de vida das pessoas diminui a criminalidade.

"[Lula deve resgatar] a política que ele fez ao longo de 2003 até 2010, com a Secretaria Nacional de Segurança Pública, talvez o Ministério da Segurança Pública sendo criado — um tipo de visão policial que não modifica o papel do encarceramento, que não modifica o papel da ação policial. Entretanto pensa em uma ação combinada com ações sociais", aponta.

Política de contenção dos homicídios é necessária

Conforme dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil tem 20,4% dos homicídios do mundo, a despeito de ter 2,7% da população mundial. Apenas em 2021, foram 47.503 assassinatos no Brasil. As vítimas desses homicídios são principalmente negras (77,9%), jovens entre 12 e 29 anos (50%) e pessoas do sexo masculino (91,3%).

"Deve haver uma construção de políticas efetivas e direcionadas para a contenção dos assassinatos, que ocorrem de forma oficial ou não oficial e cujos alvos estão na população jovem negra. Não dá para a gente desconsiderar esse perfil das pessoas que morrem no Brasil, isso é muito importante para que a gente avance", avalia o pesquisador Daniel Hirata, que ressalta que políticas que reconheçam essa situação não só podem reduzir esses indicadores, como também fortalecer a legitimidade do Estado de direito.

Para Paulo Baía, a eleição de Bolsonaro pode agravar esse quadro devido ao aumento do armamento da população e outras propostas.

"Esse quadro seria agravado exponencialmente na medida em que este caminha para o excludente de ilicitude, que é uma carta branca para qualquer ação policial legal — formal ou informal. É uma carta branca para os milhares de vigilantes armados, da [mesma] maneira que é uma carta branca para os guardas municipais armados", avalia.

Operação da Polícia Militar e da Polícia Civil no Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio de Janeiro, em 21 de julho de 2022, resultou na morte de ao menos 18 pessoas
Segundo Daniel Hirata, há uma relação entre o crescente número de mortes violentas, incluindo por ação policial, e a atuação das milícias.

"Isso porque há uma crença — que não se sustenta em dados e evidências — de que a brutalidade e a violência policial são caminhos efetivos para o enfrentamento das milícias e dos grupos armados em geral, e na verdade não são", aponta o pesquisador.

Hirata ressalta que pesquisas apontam que ações de inteligência contra "as bases políticas e econômicas" desses grupos são comprovadamente mais efetivas do que o enfrentamento direto e a brutalidade policial.

"Quando há uma escalada mais dura com relação ao enfrentamento ao crime, nós temos um aumento desses grupos. É isso que o Mapa dos Grupos Armados tem demonstrado", afirma.

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