Na África do Sul, pacientes em busca de serviços de saúde podem se deparar com homens com coletes à prova de bala na porta dos hospitais públicos. Parte de um grupo não oficial chamado "Operação Dudula", estes homens filtram o acesso das pessoas aos hospitais com base no tom da pele, reportou o jornal sul-africano Sowetan Live.
Desde julho de 2021, membros da Operação Dudula fazem varreduras em bairros sul-africanos em busca de imigrantes sem documentos, ou mesmo de imigrantes que eles consideram estarem roubando postos de trabalho dos sul-africanos.
Membros da Operação Dudula manifestam em frente ao Hospital Kalafong, em Pretória, África do Sul, 1 de setembro de 2022
© AFP 2023 / Phill Magakoe
Com uma longa tradição de imigração de mão de obra, cidadãos de países como Moçambique, Malawi, Zimbábue e Somália compõe a força de trabalho da economia mais industrializada da África.
Mas os voluntários da Operação Dudula consideram esses imigrantes culpados pelas mazelas econômicas e sociais do país. Fazendo justiça com as próprias mãos, membros do grupo são acusados de executar imigrantes que não apresentem os documentos necessários.
No início de abril, um grupo ligado à operação apedrejou e queimou até a morte o zimbabuense Elvis Nyathi, pai de quatro filhos, por não ter apresentado os documentos que provariam sua estadia legal na África do Sul. Sete pessoas estão sendo processadas pelo crime.
Membros do grupo, no entanto, negam que estejam promovendo xenofobia e violência, sustentando que seu objetivo é "limpar as comunidades", combater o uso de drogas, a prostituição e oferecer oportunidades aos sul-africanos mais pobres.
O líder do grupo, Nhlanhla 'Lux' Mohlauli, de 35 anos, alega ter um passado modesto e ter vindo de uma família pobre. No entanto, o sul-africano estudou em escolas de prestígio, é jogador de golfe e já foi dono de uma empresa de táxi-aéreo.
Líder da Operaçao Dudula, Nhlanhla 'Lux' Mohlauli, canta slogans com moradores de Soweto, África do Sul, 21 de junho de 2022
© AFP 2023 / Phill Magakoe
As origens do financiamento de Mohlauli e da Operação Dudula ainda são obscuras, mas líderes com formação religiosa como Sihle Sibisi apoiam abertamente as ideias controversas dessa operação paramilitar.
De acordo com a diretora do programa de apoio à refugiados e imigrantes Lawyers for Human Rights, Sharon Ekambaram, as ações da Dudula não parecem ser simplesmente um ato espontâneo de cidadãos ultrajados, mas sim operações orquestradas e bem financiadas.
"Esse estilo de vigilantismo é um fenômeno novo na forma como a violência está sendo organizada [na África do Sul]", disse Ekambaram em entrevista ao The Washington Post. "Tudo indica serem ações orquestradas e organizadas."
O líder da operação, Nhlanhla 'Lux' Mohlauli ainda é acusado de influenciar a polícia sul-africana. O líder ensinaria aos policiais como aplicar estratégias da Operação Dudula para que as polícias as empreguem "dentro dos limites da lei".
"Vamos libertar as forças policiais, e depois vamos tomar esse país, porque a hora está chegando. Vamos fazer a polícia voltar a ser uma força policial", disse Mohlauli ao jornal sul-africano Eyewitness News.
Líder da Operação Dudula, Nhlanhla 'Lux' Mohlauli, em ato no bairro de Soweto, na África do Sul, 27 de fevereiro de 2022
© AFP 2023 / Phill Magakoe
No entanto, muitos sul-africanos estão preocupados com os métodos da Operação Dudula. O fato de o grupo não ter constituição formal ou se organizar como um partido político dificulta o seu controle por parte das autoridades.
Além disso, o pedido de seus integrantes para que a África do Sul feche suas fronteiras, impedindo a entrada de imigrantes de quaisquer nacionalidades, "nos lembra estratégias adotadas pelo apartheid", disse o presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, conforme reportou a Al-Jazeera, em abril de 2022, lembrando o sistema de opressão da população negra vigente na África do Sul até 1994.
"Era assim que os opressores do apartheid operavam [...] negros eram forçados a mostrar um dompas [documento similar ao passaporte, que restringia o movimento da população negra], e caso não mostrassem, eram presas", recordou o presidente sul-africano.
Raízes do preconceito
A professora do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação da FFLCH-USP, Laura Murtinho, acredita que a xenofobia particularmente forte na África do Sul pode ser considerada uma herança do apartheid.
"Essa xenofobia vem do espectro de um estranhamento social advindo do apartheid, no sentido de ver um grupo étnico-linguístico diferente do seu como uma ameaça", disse Murtinho à Sputnik Brasil.
No entanto, ela aponta que a desigualdade social sul-africana também contribui para a consolidação de grupos xenófobos no país.
Estudantes do colegial protestam contra a xenofobia em Joanesburgo, África do Sul, 25 de maio de 2022
© AFP 2023 / Michele Spatari
"A construção da democracia sul-africana não foi capaz de resolver a desigualdade social no país, o que contribui para o racismo e xenofobia persistentes", notou a pesquisadora.
De fato, 80% da riqueza sul-africana é apropriada por somente 10% da população local, enquanto o país convive com uma taxa de desemprego de cerca de 33%.
Murtinho aponta, no entanto, que há grande diferença entre a ideologia de grupos como a Operação Dudula e da extrema direita tradicional sul-africana, assentada no supremacismo branco, que "reza para um Deus racista", disse Murtinho.
"A extrema direita tradicional é formada por africâneres descendentes de holandeses, saudosistas do apartheid, cujas crenças religiosas têm uma xenofobia constitutiva", relatou Murtinho.
Baseados em cânones religiosos, os membros dessas comunidades acreditam na superioridade da raça branca sobre a negra e na missão sagrada de criar um reino branco na Terra.
"A ação desses grupos foi relativamente controlada por tecnologias sociais como as Comissões da Verdade instaladas na África do Sul após o apartheid", declarou Murtinho. "Mas este grupo está em compasso de espera."
Monumento com palavras escritas na língua africâner: "Ons God Ons Volk Ons Eie" (Nosso Deus, Nosso Povo, Nossa Propriedade), em Kleinfontein
© Sputnik / Ekaterina Nenakhova
O pesquisador honorário da Universidade de Cape Town, Colin Darch, concorda que a xenofobia é um fator imbuído na sociedade sul-africana, dizendo que "a tradição da extrema direita de se posicionar com hostilidade em relação ao outro é algo que tem raízes significativas na África do Sul".
No entanto, Darch nota que a adoção de pautas da extrema direita pela população negra no âmbito da Operação Dudula é um fenômeno social novo.
"A novidade agora é que a população negra está abraçando bandeiras da extrema direita, que normalmente era uma pauta da população branca, com uma carga significativa de racismo clássico e apartheid estrutural", disse Darch à Sputnik Brasil.
Segundo ele, líderes políticos de diversas correntes ideológicas estão adotando pautas xenófobas com o intuito de angariar votos entre uma população descrente com o sistema político.
Homem canta slogans anti-imigrantes durante ato da Operação Dudula, em Joanesburgo, África do Sul, 19 de março de 2022
© AFP 2023 / Michele Spatari
Representantes do Congresso Nacional Africano (ANC, na sigla em inglês), partido considerado de centro-esquerda que governa o país desde o fim do apartheid, estão sob forte pressão para manter seu eleitorado após sucessivos escândalos de corrupção envolvendo seus membros.
"As próximas eleições vão nos mostrar se a Operação Dudula vai conseguir puxar a ANC para a direita em assuntos relacionados a imigração e se ela terá que esposar algumas bandeiras que não condizem com a sua tradição política", notou Darch.
A Operação Dudula teve sucesso em colocar a imigração e a hostilidade entre diferentes grupos étnicos, raciais e linguísticos no topo da agenda política sul-africana. Nos resta ver se seu líder, Nhlanhla 'Lux' Mohlauli, utilizará esse momento de fama para iniciar uma corrida à sucessão presidencial sul-africana.
Apoiante do partido Congresso Nacional Africano assiste a cerimônia solene de tomada de posse do novo presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa
© AP Photo / Jerome Delay
A Organização das Nações Unidas expressou preocupação com os repetidos ataques contra estrangeiros na África do Sul, acusando membros da Operação Dudula de adotarem estratégias ilegais para forçar imigrantes a deixarem o país. O comunicado pede ao governo da África do Sul que tome as medidas cabíveis, de acordo com as conferências de direitos humanos e direito dos refugiados das quais é parte.