"Desde o início da 'questão da Ucrânia' em 2008 a 2014, ficou claro para mim que a Anglosfera a usou como um cavalo de Tróia para travar tanto a UE [Alemanha] quanto a Rússia", diz o analista estratégico e diretor da Fundação CIPI em Bruxelas, Paolo Raffone. "A liderança da UE está fundamentalmente trabalhando contra os interesses europeus, cumprindo a política ditada pelos EUA/Reino Unido/Organização do Tratado do Atlântico Norte [OTAN]. Sem dúvida, a UE terá a maior parte da reconstrução da Ucrânia que será, junto com a Polônia, um feudo estratégico dos EUA/Reino Unido na Europa Oriental para separar a UE da Rússia e, portanto, impedir o peso da Alemanha como ator regional e global. [Isto é] exatamente como a teoria de Mackinder de 1901."
O governo Biden prometeu apoiar Kiev com US$ 1,5 bilhão por mês em ajuda econômica e aprovou US$ 4,5 bilhões (cerca de R$ 23,2 bilhões) em doações para a Ucrânia para cobrir as necessidades do país até o final do ano. A Casa Branca manteve conversas com autoridades da UE pressionando-as a seguir seu exemplo para manter a economia da Ucrânia à tona, escreveu Bloomberg no domingo (2), citando especialistas. De acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Ucrânia precisa de cerca de US$ 5 bilhões (aproximadamente R$ 25,8 bilhões) por mês para cobrir serviços essenciais.
Enquanto isso, a UE ainda não cumpriu seus compromissos de quase € 9 bilhões (cerca de R$ 45,8 bilhões) para Kiev. O bloco pagou apenas € 1 bilhão (aproximadamente R$ 5,1 bilhões) no passado verão europeu. Outros € 5 bilhões (cerca de R$ 25,4 bilhões) foram alocados, mas ainda não foram pagos à Ucrânia; o restante do valor permanece preso a questões formais e financeiras.
Os atrasos mencionados são compreensíveis, uma vez que "os europeus estão agora em total confusão sobre o financiamento de subsídios a seus consumidores e indústria para aliviar as contas de energia incrivelmente altas que agora estão sendo enviadas pelos fornecedores de eletricidade", disse o analista de relações internacionais Gilbert Doctorow.
"A maioria dos países da UE não pode angariar as centenas de bilhões por meio da emissão de títulos – como a Alemanha está prestes a fazer – por causa de suas economias mais fracas e alto endividamento público", diz Doctorow, colocando em dúvida a capacidade da UE de atender às demandas de Washington em relação à Ucrânia. "Os governos da UE em breve enfrentarão movimentos de falta de pagamento de seus cidadãos e não podem se dar ao luxo de serem vistos entregando recursos em dinheiro para Kiev."
A UE está enfrentando nada menos que "uma recessão em todo o continente", observou a Bloomberg no dia 28 de setembro, prevendo um "inverno rigoroso" para os lares, produtores químicos, siderúrgicas e fabricantes de automóveis da Europa. "Se os próximos meses forem especialmente gelados e os 27 membros do bloco não conseguirem compartilhar os escassos suprimentos de combustível com eficiência", a economia europeia pode se contrair em até 5%, segundo estimativas da Bloomberg Economics.
Mais cedo, o Wall Street Journal revelou que os fabricantes europeus estão mudando cada vez mais seus negócios para os EUA à medida que a crise de energia aperta. Para complicar ainda mais, o ataque de sabotagem ao sistema de gasodutos Nord Stream (Corrente do Norte) fez os preços da energia dispararem e cortou o acesso da Europa a volumes adicionais de combustível acessível.
Segundo Raffone, a divisão entre os países da UE já é uma realidade. Para ilustrar seu ponto, ele se refere à decisão unilateral de Berlim de alocar € 200 bilhões (cerca de R$ 1 trilhão) para proteger a população do país do aumento dos preços da energia. Outros governos da UE estão lutando para resolver suas crises por conta própria. Enquanto isso, se o novo governo da Itália não conseguir tirar o país da crise fiscal, a economia de Roma pode detonar e causar a desintegração da UE, alega Raffone.
Embora tecnicamente a UE possa "alimentar" a Ucrânia regularmente, seria politicamente desastroso nas atuais circunstâncias.
"Como os políticos vão explicar que enormes fundos podem ser disponibilizados para a Ucrânia, mas não para apoiar os cidadãos da UE?", disse o analista estratégico. "A tentativa de justificar tal escolha, lembrando os famosos 'valores da UE', é perigosa porque os Tratados da UE nunca falam de 'valores'. O risco é desencadear uma série de 'saídas da UE'", alertou o especialista.