Quais as motivações do ataque terrorista no Irã e como ele se relaciona com os protestos no país?
00:22, 28 de outubro 2022
A Sputnik Brasil conversou com especialistas em relações internacionais e em Oriente Médio para entender os objetivos dos terroristas com o ataque e suas consequências para o governo e a população do país.
SputnikUm
atentado na mesquita de Shah Cheragh, na cidade iraniana de Shiraz, na última quarta-feira (26), deixou ao menos 13 pessoas mortas, entre elas mulheres e crianças, e mais de 20 feridas.
Segundo a agência iraniana de notícias Tasnim, três pessoas abriram fogo no santuário no momento das orações noturnas. As forças de segurança detiveram duas delas, e a terceira ainda está foragida. Segundo dados atualizados, o ataque foi perpetrado por um homem de 23 anos chamado Hamed Badakhshan. A procuradoria da província onde ocorreu o atentado negou que o ataque tenha sido obra de um grupo.
O Daesh (organização terrorista proibida na Rússia e em vários outros países)
reivindicou a autoria do ataque. Para Teerã, os terroristas teriam se aproveitado dos protestos recentes no país para realizar a ação.
O atentado foi tema do
episódio 119 do podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, publicado nesta quinta-feira (27).
Matheus Dias, pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos (Inest) da Universidade Federal Fluminense (UFF), José Niemeyer, coordenador do curso de relações internacionais do Ibmec, e Leonardo Paz, cientista político e analista de inteligência do Núcleo de Prospecção e Inteligência Internacional (NPII) da Fundação Getulio Vargas (FGV), explicaram a situação e seus prováveis desdobramentos.
Segundo Matheus Dias, da UFF, ainda não é possível afirmar se o ataque tem relação direta com a morte da jovem Mahsa Amini, de 22 anos — exatos 40 dias antes —, que ocasionou uma
onda de protestos contra o governo no país.
"O Irã vai buscar meios para identificar se esse evento tem relação com os movimentos de resistência, de insurgência. Houve uma repressão pontual a uma jovem que veio a óbito, e isso repercutiu de uma forma muito devastadora, devido ao alastramento da indignação popular", disse o especialista.
Segundo Dias, "muito provavelmente" o governo do país já está criando mecanismos para averiguar se o atentado teria o objetivo de "inflamar outros grupos" a se juntarem ao movimento.
"A violência sempre salta aos olhos, sempre chama atenção. Os dois eventos têm uma conotação muito aproximada. O Irã é um Estado que converge à teocracia, o governo se dá por imperativos, princípios e premissas próprios da religião. Então há um valor maior quando esses fatores estão envolvidos", avaliou.
Com a reivindicação do ataque pelo Daesh, Dias aponta que novas tratativas devem ser colocadas à mesa de negociação para entender as motivações dos terroristas.
De acordo com o pesquisador da UFF, apesar de o terrorismo ser uma violência extrema, ele "não se alimenta por si só", mas também "carrega consigo objetivos políticos a serem alcançados".
José Niemeyer, coordenador do curso de relações internacionais do Ibmec, diz que há "quase um padrão na rotina do povo iraniano, das forças que ali operam". Segundo ele, atentados no Irã e em alguns países islâmicos se tornaram uma prática para se posicionar politicamente.
"Isso tem muito a ver com as práticas políticas das estruturas do Estado iraniano", afirma Niemeyer. "São países muito autocráticos, voltados à figura do líder."
22 de outubro 2022, 10:07
Sunitas x xiitas
Matheus Dias, da UFF, relata que a dimensão do conflito entre grupos sunitas e xiitas, dois ramos importantes do islamismo, tem raízes na antiguidade.
Ele afirma que discordâncias históricas de diretrizes da própria fé muçulmana entre famílias que pertenciam ao mesmo tronco provocaram a cisão que reverbera até os dias de hoje, condicionando diversos aspectos da cultura islâmica.
"Esses povos rivalizam não só em comunidades e Estados que professam a fé muçulmana em sua maioria, mas também em outros Estados em que há uma presença de fronteira. Israel, por exemplo, tem uma comunidade árabe bem significativa. Então há um choque cultural, étnico-religioso nessas regiões", pontuou Dias.
Embora o Daesh — grupo extremista sunita — tenha ação ativa em praticamente todos os países do Oriente Médio, não tem tanta força no Irã — de maioria xiita —, explica o pesquisador. Segundo ele, há outros grupos com presença e participação mais incisiva na região.
"Praticamente todos os grupos terroristas que conhecemos por vezes rivalizam com partidos políticos que conduzem a situação política em um país, e o Daesh está buscando se consolidar na região", avalia.
O especialista afirma que os grupos terroristas usam os ataques para causar comoção e atingir objetivos políticos, ao chamar a atenção da comunidade internacional. Segundo ele, ao vinculá-lo de alguma forma à morte da jovem iraniana no mês passado, devido a uma intervenção do Estado, a "repressão coloca o poder político do Irã em uma condição de vulnerabilidade".
"O atentado terrorista é uma manifestação de um grupo com essa natureza que busca alterar o status quo. Muito provavelmente esse grupo está [agindo] no sentido de buscar uma mobilização para inflamar a população por mais manifestações e, dessa forma, conseguir, não só internamente, mas também externamente, angariar apoio de outras nações que lidam com as questões internas no Irã", disse Dias.
Como o Irã costuma reagir contra atentados?
O cientista político Leonardo Paz, da FGV, acredita que as autoridades iranianas "muito provavelmente vão agir duramente".
Segundo ele, o primeiro passo é identificar os objetivos para depois provocar "algum tipo de retaliação". "É geralmente nesse sentido que a coisa operaria. Sendo um grupo, e não um país, eles conseguiriam mais liberdade para retaliar", afirma.
Sobre punições específicas aos autores do atentado, o especialista afirma que os detidos "vão passar por um processo de investigação" para se avaliar de quais crimes eles serão acusados. "Ainda é muito cedo para dar o parecer sem ter mais informação do próprio governo", disse.
"Acho que o fato de haver mulheres e crianças [entre as vítimas] faz a população aceitar ou até eventualmente desejar penas mais duras", aponta Paz.
27 de outubro 2022, 09:33
De acordo com o cientista político, o governo iraniano trata a morte da jovem Mahsa Amini com grande seriedade. A chamada "primavera árabe", que derrubou diversos governos no Oriente Médio e no Norte da África na década passada, deixa o governo em alerta máximo contra eventuais interferências externas em seus processos políticos.
"O governo trata como prioridade o caso e muito provavelmente vai fazer de tudo para tentar esvaziar esse movimento. E esse fato agora pode ajudar o governo a criar uma nova narrativa para tentar tirar a atenção das pessoas em relação à questão da Amini", avalia.
Potências centrais 'ditam' pautas da mídia internacional
Segundo José Niemeyer, do Ibmec, a cobertura internacional de mídia é "pautada pela agenda ocidental". Ele lembra que mesmo com tantos conflitos no Oriente Médio, a Ucrânia tomou conta do noticiário justamente por estar na Europa, em uma região próxima a grandes potências.
"Se não for a mídia alternativa, ninguém acaba tendo notícia. E é importante termos notícia do que está acontecendo no Irã. Nós temos cidadãos iranianos vivendo no Brasil e em diversas partes do mundo. É um país importante, não é um país qualquer", adverte o especialista em relações internacionais do Ibmec.
Ele afirma que potências centrais, como Estados Unidos, União Europeia, China e Japão, "ditam o ritmo da pauta da mídia internacional". Ele acredita que esse cenário pode perdurar até a multilateralidade global se estabelecer.
"Quanto mais multilateral for o mundo, mais espaço haverá para novas mídias surgirem e até para as tradicionais mudarem suas pautas e fazerem algo de novo", disse.