Com bolsonarismo vivo, Lula precisará manter frente ampla para governar, dizem analistas
21:11, 2 de novembro 2022
Redação
Equipe da Sputnik Brasil
No dia 30 de outubro, o Brasil escolheu Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como seu próximo presidente. A Sputnik Brasil ouviu dois pesquisadores de ciência política para discutir as expectativas sobre o terceiro mandato do petista, que retorna ao Planalto diante de desafios sociais e econômicos e em meio a uma disputa política acirrada.
SputnikDepois de três dias desde o resultado da eleição presidencial, algumas coisas já começam a andar na direção da formação do novo governo. Seguindo a Lei
10.609/2002, o trâmite para a transição da gestão de Jair Bolsonaro (PL) para a de Lula deu o primeiro passo, na terça-feira (1º), com a
indicação do vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin (PSB), como coordenador do processo.
Já na quinta-feira (3), Alckmin deve se reunir com o ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira (PP), para tratar dos primeiros pontos da transição governamental. Enquanto o tabuleiro se desenha para o próximo período, pouco se sabe ainda sobre os desafios políticos concretos a serem enfrentados por Lula, que terá pela frente uma crise social e econômica para resolver.
Além disso, o processo de formação do novo governo ocorre em meio a protestos em todo o Brasil, com bloqueios de rodovias realizados por eleitores de Bolsonaro que não aceitam a vitória eleitoral petista.
As jornalistas Bárbara Pereira e Francini Augusto, apresentadoras do podcast Jabuticaba Sem Caroço, da Sputnik Brasil,
conversaram com dois cientistas políticos para analisar as nuances do complexo cenário formado após o término do segundo turno.
Lula tem vitória dupla, mas bolsonarismo se cristaliza na sociedade
Para a cientista política Mayra Goulart, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a análise desse processo começa pelo impacto da vitória eleitoral de Lula, que, segundo ela, se deu em um contexto adverso e se desdobrou em pelos menos dois êxitos.
"É uma vitória dupla de Lula. Por um lado, ele venceu porque foi contemplado novamente com mais um mandato, se reafirmando como o maior líder da história recente. Por outro lado, Lula derrota um candidato que está no poder. É comum candidatos no poder usarem a máquina pública a seu favor, mas Bolsonaro inaugurou outro patamar para a utilização da máquina pública para fins eleitorais. Fez isso de uma forma muito mais intensa e descarada", avalia a pesquisadora em entrevista ao podcast da Sputnik Brasil.
Diante do desafio do novo governo de aglutinar apoio para concretizar projetos, Goulart acredita que a tendência é que parte da base política de Bolsonaro seja transferida para Lula. Segundo ela, uma parcela importante dos políticos tipificados como de direita na atual base congressista do governo é, na verdade, fisiológica — muitas dessas figuras são identificadas com o chamado centrão.
Sendo o principal interesse desse setor permanecer próximo do poder para a busca de cargos e recursos para suas bases eleitorais, a pesquisadora acredita que é possível que se aproxime de Lula.
"Esse grupo de liderança está muito mais interessado em estar próximo do poder, de quem tem a caneta e de quem tem acesso aos recursos do que em fazer uma política propriamente ideológica. Não é que eles não sejam conservadores nos seus costumes, mas eles têm uma prioridade, que é se manter no poder. É isso que chamamos de candidatos fisiológicos. E eles serão atraídos para esse governo assim que ele começar", analisa Goulart.
Ainda segundo a pesquisadora, apesar da vitória petista e dos possíveis arranjos políticos com a atual base do governo, o resultado da votação mostrou que o bolsonarismo em meio à população continua com grande força e se cristalizou na sociedade.
"[É] Uma força política minoritária, que não corresponde a essa totalidade de votos que Bolsonaro consegue amealhar porque o antipetismo é um aglutinador de votos que não são propriamente bolsonaristas. Apesar disso, há um grupo muito grande na sociedade, quase um quarto da população — de 25% a 30% — que está contaminado por esse extremismo de direita", alerta a pesquisadora, que acrescenta que Lula provavelmente enfrentará dificuldades para governar porque "esse extremismo de direita é antidemocrático e antiliberal".
Um possível exemplo da cristalização desse grupo na sociedade brasileira é a imediata formação, após o segundo turno, de
centenas de bloqueios realizados por bolsonaristas em rodovias do país contra o resultado eleitoral e
a favor de intervenções para impedir a transição de governo.
"Acredito que teremos um problema que diz respeito a esse segmento de cerca de 25% da população que está muito radicalizado porque foi radicalizado por Jair Bolsonaro e é comprometido com um ideal de vida e de política incompatível com a democracia liberal. Isso, sim, vai criar um problema para qualquer tipo de governo democrático que queira se manter dentro desses pilares valorativos e normativos da democracia liberal. Então serão necessários paciência e um esforço para dialogar com o que é muito diferente em termos políticos", afirma.
Divisão na sociedade é operacionalizada e requer reconfiguração política
A pesquisadora Mayra Goulart explica que, apesar da
aparente divisão entre apenas dois grandes grupos políticos no país, há
uma grande variedade de agrupamentos na sociedade brasileira. Segundo ela, a impressão de que apenas dois grupos disputam a hegemonia política no Brasil
parte de uma divisão maniqueísta entre bem e mal
operacionalizada pela extrema-direita.
"No Brasil existem muitas fraturas, muitos segmentos, muita pluralidade. Acredito que é a partir da contribuição desses diferentes grupos sociais e políticos que a gente vai conseguir reconfigurar os padrões da nossa república. Acho que a gente não vai conseguir voltar atrás, que vai ser como se o Bolsonaro nunca tivesse chegado ao poder", aponta.
Para Goulart, diante desse cenário, existe uma necessidade de se "reconfigurar" a política no Brasil.
"A gente tem coisas novas no horizonte, tem uma população mais atuante e consciente politicamente. Houve uma ativação ideológica e política da sociedade mesmo nos segmentos populares. Acho que a gente vai ter que reconfigurar os padrões de política e de atuação política do jogo democrático para lidar com essa nova conjuntura", diz.
Lula terá que fazer um governo parecido com sua campanha
Para o cientista político Paulo Baía, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a tensão política que se traduziu na
diferença estreita de 2,1 milhões de votos entre Lula e Bolsonaro obrigará o petista a
manter um governo de frente ampla. O segundo turno terminou com
50,9% dos votos para Lula (cerca de 60,3 milhões de eleitores) e
49,1% para Bolsonaro (cerca de 58,2 milhões de pessoas).
"Lula terá que fazer um governo muito parecido com a sua campanha, um governo de frente ampla, um governo de frente democrática, em que o PT participará do governo, mas outras forças também, sobretudo as que se agregaram no segundo turno, como Simone Tebet [MDB] e Marina Silva [Rede]", avalia o professor em entrevista à Sputnik Brasil, acrescentando que Geraldo Alckmin (PSB) terá um papel importante nesse processo.
Baía acredita que essa concertação não enfrentará grandes dificuldades no Congresso Nacional. Segundo ele,
Lula deve conseguir formar uma equipe ministerial que garanta
o apoio necessário na Câmara e no Senado, aglutinando diversos setores da sociedade civil para dar consistência ao seu governo.
"Lula consegue fazer isso, como já conseguiu em seu primeiro governo. Estou me baseando muito na linha do pronunciamento que ele fez na noite do dia 30 ao agradecer os votos. Ali ele já desenhou os ministérios que pretende fazer. Ele vai ter uma composição forte na Câmara dos Deputados e no Senado, mas ele compõe maioria com uma equipe ministerial que atenda a 310 deputados e a 56 senadores", analisa o pesquisador.
Na avaliação do cientista político, a definição de nomes para esses ministérios só deve ocorrer a partir do dia 20. Ele acredita que Marina Silva, Simone Tebet, Gleisi Hoffmann (PT), Gilberto Carvalho (PT), Fernando Haddad (PT) e Jaques Wagner (PT) são nomes provavelmente cotados para a equipe ministerial de Lula. Da mesma forma, Alckmin deve ter um papel importante no governo, para além da Vice-Presidência, avalia o pesquisador.
'Bolsonaro continua sendo um líder popular importante'
Na visão de Baía, não é surpreendente a demora do pronunciamento de Bolsonaro após o término das eleições. Na terça-feira (1º), o presidente brasileiro fez um breve pronunciamento, quebrando um silêncio que durava desde o anúncio da vitória de Lula. O mandatário, porém, não reconheceu diretamente a derrota e deixou o tema da transição de governo para uma fala posterior do ministro Ciro Nogueira.
"O vice-presidente da República já se manifestou, o Hamilton Mourão, o presidente da Câmara dos Deputados [Arthur Lira, PP-AL] já se pronunciou e o presidente do Senado [Rodrigo Pacheco, PSD-MG] já se pronunciou. Do ponto de vista institucional, isso é importante", diz Baía.
Para o pesquisador, a demora no pronunciamento de Bolsonaro sinaliza "uma certa ingratidão" com seus mais de 58 milhões de eleitores, que Baía destaca ser um número expressivo, que consolida o bolsonarismo em uma espécie de vitória na derrota eleitoral.
"Bolsonaro deixou de vencer as eleições por 2 milhões de votos. Bolsonaro continua sendo um líder popular importante pela quantidade de adeptos que tem", diz o cientista político, acrescentando que a base de eleitores construída por Bolsonaro faz do bolsonarismo uma força política relevante, que continuará disputando a esfera pública brasileira nos próximos anos.