Parece haver um consenso entre comentaristas políticos de que as manifestações ao redor dos principais quartéis do país são absolutamente orgânicas e ocorreram apesar da ausência de uma liderança política ou mesmo de uma orientação partidária coordenada.
O fato é que a insatisfação de grande parte do eleitorado brasileiro foi catalisada pelos algoritmos das redes sociais, assim como a história de que haveria um "remédio" contra a vitória do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no segundo turno da eleição presidencial: a intervenção federal.
Histórias ocasionalmente surgem nas redes e, sendo verdadeiras ou não, às vezes ganham corpo diante da profusão de compartilhamentos, chegando ao ponto de serem repetidas nas ruas como a mais absoluta verdade. Nos últimos dias, milhares de apoiadores do atual chefe de Estado brasileiro foram às ruas para pedir uma intervenção federal no país, crendo ser a última esperança para interromper a posse de Lula.
Entretanto, como apontou Antonio Carlos de Freitas Júnior, especialista em direito constitucional, existem problemas com a lógica e com os objetivos das atuais manifestações. Em primeiro lugar, ele assegurou que intervenção federal não tem qualquer relação com mudanças no Executivo brasileiro.
"Intervenção federal é a suspensão temporária da autonomia dos estados. Isso mesmo, nada mais é do que o governo federal impor decisões aos estados membros", explicou.
Ele apontou que existem casos específicos em que se pode decretar uma intervenção federal em uma unidade federativa (mas não no Estado brasileiro), como para "manter a integridade nacional; repelir invasão estrangeira ou de uma unidade da Federação em outra; ou pôr termo a grave comprometimento da ordem pública".
Em seguida, relembrou que o Brasil passou recentemente por uma intervenção federal, decretada pelo governo de Michel Temer (MDB) em 2018, no Rio de Janeiro. "Na ocasião, o governo federal impôs a nomeação do secretário de Segurança Pública. Veja bem que nada tem a ver com a autonomia do próprio governo federal ou qualquer coisa relacionada à eleição ou à ocupação do cargo de presidente da República", lembrou o especialista.
'Não queremos o artigo 142'
Nos últimos quatro anos, em diversas manifestações a favor do presidente Jair Bolsonaro, seus apoiadores pediram que acionasse o artigo 142 da Constituição brasileira, na esperança de que o Congresso e o Judiciário fossem embargados pelos militares. O próprio presidente, reiteradas vezes, rejeitou a leitura que alguns faziam desse trecho da Carta de 1988.
Nas redes sociais, em meio às tentativas de se organizar os movimentos bolsonaristas nas ruas, muitos apontaram que o uso do artigo 142 seria inviável com as pretensões dos manifestantes. Como aponta o especialista consultado pela Sputnik Brasil, o artigo não prevê intervenção dos militares nas eleições ou em seus resultados.
"No caso de fraude eleitoral, a Constituição prevê a ação de impugnação de mandato eletivo perante a Justiça Eleitoral. Não há qualquer previsão desse tipo de atuação das Forças Armadas na eleição, muito menos no resultado. Isso seria um rompimento constitucional. Sem regras. Seria um golpe de Estado ou revolução", apontou.
O problema para os manifestantes é que a fraude eleitoral não foi constatada pela Justiça. Diante desse fato, criou-se nas redes a narrativa de que uma intervenção federal poderia garantir "a instalação de um tribunal militar", que reconheceria a fraude e conduziria o país para "uma nova eleição".
Antonio Carlos de Freitas Júnior enfatizou que o artigo que cita a intervenção federal não versa sobre "novas eleições" ou mesmo sobre uma ação militar no Judiciário. Para ele, o que se criou nas redes sociais foram narrativas e "eufemismos para rompimento constitucional, revolução ou golpe de Estado".
"Apenas pedir é um contrassenso", disse, acrescentando que o uso de violência em meio a pedidos para uma ruptura institucional "é crime previsto nos artigos 359-L e 359-M do Código Penal".