Panorama internacional

Doutrina Monroe 2.0: América para os americanos ou para os estadunidenses?

No início do séc. XIX James Monroe, um presidente dos EUA, declarou uma doutrina para impedir que poderes de outros continentes pudessem influenciar as Américas.
Sputnik
A Doutrina Monroe, anunciada há 199 anos, tem sido descrita como a base da política expansionista dos EUA.
A doutrina, que leva o nome do então presidente James Monroe (1817-1825), foi defendida como um baluarte contra a colonização europeia e o perigo representado pelo Império Russo, e se tornou a arma política dos EUA para a expansão na região latino-americana.
Em 1904, sob a presidência de Theodore Roosevelt (1901-1909), foi adicionado um corolário ao documento Monroe, que estabeleceu que se um país ameaçasse os direitos ou a propriedade de cidadãos ou empresas americanas nos países das Américas, os EUA seriam "obrigados" a intervir nos assuntos da nação em questão.
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Segundo Ismene Brás, doutorada em filosofia e internacionalista da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), durante o séc. XIX e parte do séc. XX, houve ações de interferência nas Américas por potências europeias como França e Reino Unido, mas o slogan "América para os americanos" sempre foi ambíguo na prática, pois os Estados Unidos costumavam ser os mais beneficiados.
"Quando dizemos 'América para os americanos' temos que distinguir da parte histórica o que acabou acontecendo na realidade. É preciso diferenciar se é América para os americanos ou a noção de que os assuntos de todo o continente pertencem a seus moradores", explicou Brás em uma entrevista à Sputnik.
Ele apontou que a política de interferência dos EUA não começou com a Doutrina Monroe, foi justamente por esses atos de expansionismo que a doutrina é vista como uma arma para a política de interferência. Daniel Garay, um acadêmico da UNAM, sublinhou que desde a promulgação da doutrina, ela tem sido aplicada de forma seletiva, e de acordo com a conveniência de Washington.
"Às vezes tem sido dito que a Doutrina Monroe é a defesa da América Latina de outros países, mas não é: é a defesa dos interesses dos EUA na região", disse ele à Sputnik.

Fim da política ou nova iteração?

Em 2013 John Kerry, então secretário de Estado dos EUA (2013-2017), assegurou à ONU que a política da Doutrina Monroe havia terminado, e que as relações na América Latina deveriam ser entre iguais. Esse discurso tem ressoado na atual administração de Joe Biden. Em novembro de 2021, quando o presidente dos EUA e Andrés Obrador, seu homólogo do México, se reuniram em Washington, o último agradeceu pelo tratamento respeitoso e disse que "eles não nos vêem como um quintal".
No entanto, Ismene Brás afirmou que embora não se fale mais de uma Doutrina Monroe como tal, a verdade é que o neoimperialismo impôs novas formas de intervencionismo construídas pelos EUA. Estas formas não constituem uma política formal ou mesmo visível, mas desempenham um papel importante em termos de relações socioeconômicas na região, garantiu, referindo o exemplo da relação da América Latina com a China.
"Nós [países latino-americanos] somos os espaços onde as lutas comerciais [entre potências] são travadas", disse ele.
Garay referiu que o triunfo dos governos de esquerda em países como Argentina, Chile e Colômbia também implicou um processo de distanciamento desses países dos Estados Unidos, um país que, garante, não quer perder sua preponderância na região.
"Os Estados Unidos vão tentar evitar a pressão que a China está exercendo sobre os países latino-americanos, por isso, os Estados Unidos não estão tirando o dedo da bola para continuar aplicando seus interesses", disse ele.
A China, explica o acadêmico, usou a Nova Rota da Seda, um conjunto de projetos de desenvolvimento de infraestrutura global promovido pela China desde 2013, para aumentar as ligações com os países sul-americanos. Junto com a Rússia, a China ganhou terreno na região, enquanto o país norte-americano ficou atrás, o que diz ser um sintoma da desconfiança que os Estados da América do Sul têm devido a ressentimentos históricos.
Segundo Ismene Brás, os EUA cultivam a imagem de que a China é um "país agressivo". Apesar disso, ela assinala que o país asiático também tem sido historicamente sitiado pela nação norte-americana. Esta percepção, impulsionada pelos EUA contra a China e a Rússia, também influenciaria as relações socioeconômicas e ideológicas.
"Um país, neste caso um poder que busca hegemonia, sempre vai gerar uma certa percepção cultural, e uma forma de expandir e garantir mercados e investimentos será baseada na percepção cultural".
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