O futuro presidente Luiz Inácio Lula da Silva já deixou claro qual é a sua prioridade dentro do Congresso: obter apoio para aprovar a PEC da Transição, deixando de fora do teto de gastos cerca de R$ 198 bilhões, que seriam destinados a áreas sociais. A proposta esbarra nos múltiplos interesses que compõem o Legislativo brasileiro, catalisados pelo deputado Arthur Lira (PP-AL) e pelo senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado.
A proposta inicial do PT era manter alguns gastos, sobretudo sociais, à margem do teto por quatro anos. Diante da falta de apoio, a equipe de transição já trabalha com o prazo de um ano. O cenário é apenas uma amostra das dificuldades que o governo terá ao lidar com o Congresso, amplamente dominado por partidos conservadores e alinhados à oposição.
O fator econômico, nesse sentido, será mais uma vez determinante para as pretensões de governabilidade do novo presidente brasileiro. Para Agnaldo dos Santos, professor de ciência política econômica da Universidade Estadual Paulista (Unesp), após quatro anos de uma agenda neoliberal imposta pelo ministro da Economia Paulo Guedes, o empresariado brasileiro "não está totalmente alinhado com a agenda de austeridade fiscal".
Ele aponta que "a economia real, do dia a dia, tem empresários com interesse na recuperação do consumo, que querem vender para ter lucro". Nesse sentido, embora muitos deles também tenham "um pé no setor especulativo", o professor aponta que é preciso ter "expectativa de venda no médio/longo prazo", a partir de "investimentos públicos para alavancar seus negócios".
Segundo ele, outro ponto que tende a favorecer uma agenda econômica com a cara do governo Lula é "a recuperação da imagem do Brasil no exterior, que também pode ser importante para atrair investimentos produtivos".
"Nos últimos anos, por exemplo, empresas automobilísticas saíram do país por falta de demanda. Se a política econômica futura conseguir recuperar a expectativa de crescimento, é possível que isso atraia investimentos", disse.
Lula terá apoio dos empresários?
A questão envolvendo o apoio do empresariado brasileiro com relação às novas diretrizes econômicas do país é tratada com reticência pelo governo. Embora haja a expectativa por parte dos empresários de que investimentos públicos podem transformar a dinâmica econômica do país, há também o receio de que o governo perca a mão na quantidade de gastos, mergulhando o país em um abismo fiscal.
Na última semana, Lula prometeu um Ministério da Economia com "a cara do sucesso do seu primeiro governo". Para conseguir uma retomada econômica, Agnaldo dos Santos avalia que o Brasil precisa "dosar as margens internas de manobra e as condições impostas pelas relações com o exterior". Ele aponta que a economia mundial ainda não se recuperou do tombo de 2008, da pandemia de COVID-19 e do conflito na Ucrânia.
Para ele, "uma parte da crise econômica dos últimos dez anos no Brasil precisa ser debitada na conta da orientação desastrosa neoliberal, que muitos países abandonaram, mas que continuou vigorosa em nossa política econômica. Parte expressiva da inflação nesse período não tem origem na demanda, já que houve queda na renda e contração dos gastos das famílias".
Ele sustenta que o câmbio "fortemente desvalorizado", associado "ao desmonte do nosso parque industrial", forçou a importação de diversos produtos, inclusive aqueles que eram produzidos no país, "como os do complexo químico". A questão da desindustrialização brasileira foi um ponto levado ao governo de Jair Bolsonaro (PL) por diversos segmentos do empresariado brasileiro, principalmente os de equipamentos médicos e automobilismo.
"Investimentos em infraestrutura e transferência de renda às populações mais vulneráveis são absolutamente necessários. É preciso aproveitar o capital político da vitória eleitoral para convencer o Congresso Nacional da necessidade de alterar essa regra do teto que acabou entrando na Constituição, algo inexistente em outros países, especialmente os de dimensões econômicas como o nosso", disse.
O 'efeito Lula'
Diante das inúmeras dificuldades que tangenciam a definição da política econômica do novo governo, existe, segundo Agnaldo dos Santos, um fator que pode ser fundamental para o sucesso de Lula: sua capacidade de negociação com outros atores políticos e econômicos, mesmo os antagônicos.
Ele destaca que "os desafios para Lula agora são maiores do que em sua primeira eleição, em 2002". Mas, ainda assim, "o PT continua sendo o maior partido da esquerda brasileira, e com grande resiliência, sobrevivendo à onda de desmoralização iniciada pelo chamado 'mensalão' e depois pela [operação] Lava Jato".
O analista político aponta que, longe de compor maioria no Congresso, "Lula precisará exercer continuamente aquela habilidade que domina como poucos, a negociação". Dito isso, seu maior desafio será manter uma maioria composta pela esquerda, parte da direita convencional (MDB, PSDB, União Brasil) e "alguns votos egressos da atual base congressual de Bolsonaro, como alguns deputados do Republicanos e do PL".
"Como são interesses muito distintos, será uma árdua tarefa. Mas só o efeito Lula tem hoje condições de promover essas convergências", comentou.
Um primeiro sinal nesse sentido é o apoio do PT à recondução de Arthur Lira à presidência da Câmara. "Ele é uma espécie de 'sucessor' de Eduardo Cunha [ex-presidente da Câmara], que acabou sendo um dos algozes de Dilma [Rousseff]". O analista político aponta que essa aproximação fortaleceu tanto a governabilidade de Lula quanto o futuro político de Arthur Lira, que depende do chamado orçamento secreto para a manutenção de seu apoio entre diversos parlamentares.
Para Agnaldo dos Santos, a dobradinha Lula e Lira "tem em sua matemática a decisão que poderá ser tomada pelo STF [Supremo Tribunal Federal] nesta semana, que julgará a constitucionalidade do chamado orçamento secreto. Se esse expediente for considerado inconstitucional, diminuirá muito o poder de Lira na Câmara dos Deputados".
Com isso, há dois cenários possíveis colocados para Lula antes de fazer sua próxima jogada no xadrez político de Brasília: sem o orçamento secreto, as negociações do governo eleito com a Câmara tendem a ser mais fáceis, com Lira perdendo força. No entanto "se forem mantidos o orçamento secreto e o poder de Lira, Lula já terá indicado disposição para dialogar com o presidente [...] [da Câmara]".