Um dos assuntos mais comentados na reta final do governo Bolsonaro é a imposição de sigilos "de até 100 anos" a uma ampla gama de informações, que vão desde o projeto do submarino nuclear brasileiro até a lista de convidados de Michelle Bolsonaro em cultos religiosos na Granja do Torto.
Apostando na insatisfação popular com a tarja preta em tantos documentos, o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva prometeu retirar todos os sigilos impostos durante a gestão de seu opositor.
"Eu vou ganhar as eleições, e quando chegar dia primeiro de janeiro, eu vou pegar seu sigilo e vou botar o povo brasileiro para saber por que você esconde tanta coisa. Afinal de contas, se é bom, não precisa esconder", disse Lula durante debate na TV Bandeirantes, em outubro de 2022.
Especialistas esperam ansiosamente pela liberação de informações sobre o processo disciplinar do ex-ministro da Saúde, general Pazuello, enquanto curiosos gostariam de ver os detalhes sobre a prisão de Ronaldinho Gaúcho no Paraguai, ou das viagens internacionais do filho do presidente, Eduardo Bolsonaro.
Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Jair Bolsonaro ( PL), candidatos à Presidência da República, durante debate realizado na emissora Bandeirantes em parceria com TV Cultura, portal Uol e Folha de São Paulo, na zona sul de São Paulo, 16 de outubro de 2022
© Folhapress / André Ribeiro/Futura Press
Mas será que Lula tem autoridade para desclassificar todos esses documentos em 1º de janeiro? E, afinal, o governo Bolsonaro foi realmente o que mais impôs sigilo a informações oficiais? A Sputnik Brasil conversou com especialistas para entender qual o futuro da transparência dos atos públicos no Brasil.
Clã Bolsonaro
De acordo com a cofundadora e diretora da agência de dados Fiquem Sabendo, especializada na Lei de Acesso à Informação (LAI), Maria Vitória Ramos, a transparência no Brasil evolui desde a aprovação da lei, em 2011.
A lei garante a publicidade dos atos públicos, mas prevê que informações "imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado" sejam mantidas em sigilo. Nesses casos, documentos reservados são mantidos longe do público por cinco anos, enquanto documentos secretos se mantêm fechados por 15 anos e os ultrassecretos por 25 anos.
Cerimônia do Dia do Soldado, com a Imposição da Medalha do Pacificador e da Medalha Exército Brasileiro (foto de arquivo)
© Foto / Estevam Costa / Palácio do Planalto / CC BY 2.0
O governo Bolsonaro, no entanto, abusa de dispositivos da LAI que buscam proteger informações pessoais, a fim de blindar o presidente e membros da sua família.
"Durante o governo Dilma muitas informações foram colocadas sob sigilo, principalmente nas Forças Armadas. A questão do Bolsonaro é que ele personaliza o sigilo, aplicando-o para casos relacionados a ele pessoalmente", disse Ramos à Sputnik Brasil.
De fato, os brasileiros estão se acostumando a ouvir expressões como "sigilo de 100 anos" e a considerar que a carteira de vacinação do presidente, ou a lista de frequentadores do Palácio do Planalto, são assuntos da esfera privada.
Filhos de Jair Bolsonaro, o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) e o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), participam de cerimônia de imposição de insígnias da Ordem do Rio Branco, no Itamaraty, Brasília, 3 de maio de 2019
"O que acontece é que acessos a informações sobre o presidente Bolsonaro [...] foram negados como se fossem informações privadas, e não sobre a principal pessoa pública do país", declarou Ramos. "Existe uma aplicação equivocada da lei, talvez ilegal e de má fé, para censurar e cercear informações relacionadas à figura do presidente."
O doutor em Direito do Estado pela USP Igor Sant'Anna Tamasauskas concorda que houve aplicação equivocada da LAI durante o governo Bolsonaro, e sugere que ela tenha sido intencional.
"Houve uma banalização e abuso na utilização dessa prerrogativa de classificar documentos como sigilosos. Isso é uma aberração que precisa ser corrigida", disse Tamasauskas à Sputnik Brasil.
O advogado, sócio do escritório Bottini e Tamasauskas, explica que Lula tem, sim, autoridade para retirar sigilo dos documentos. Além disso, o próprio órgão que impôs o sigilo tem a prerrogativa de rever sua decisão.
Luiz Inácio Lula da Silva (PT) durante caminhada e comício na cidade de Juiz de Fora (MG), em 21 de outubro de 2022
"O ato administrativo que impôs a classificação pode ser revisto, assim como qualquer outro ato administrativo. Tanto autoridade hierarquicamente superior, quanto o próprio órgão podem rever o sigilo, caso identifiquem uma informação equivocada", esclareceu Tamasauskas.
O Judiciário também tem a prerrogativa para retirar sigilo de documentos, assim como o cidadão comum, que pode solicitar a abertura de informações públicas através do portal da transparência.
"O problema é que, se seguirmos as regras colocadas pelo Exército, por exemplo, levariam 700 anos para a sociedade civil conseguir a abertura de todos os documentos que foram colocados em sigilo desde 2013", considerou Ramos.
Levantamento do jornal O Estado de São Paulo aponta que o Exército é o órgão que mais colocou documentos em sigilo de 2019 para cá. Acesso a informações como a ficha funcional de Fabrício de Queiroz, ex-assessor do filho do presidente Flávio Bolsonaro, foram negados com base na proteção de informações de cunho pessoal.
Abuso nos órgãos de segurança
O desrespeito à LAI não se restringe ao gabinete do presidente. Órgãos de segurança, como a Polícia Federal, Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), Forças Armadas, Itamaraty e Ministério de Ciência e Tecnologia, se utilizam de normas internas para negar o acesso a informações secretas, mesmo depois de expirado o prazo do sigilo.
3º Sargento, Renan Péricles Bezerra da Silva, aluno melhor classificado na Escola de Sargentos de Armas (ESA), de Três Corações, para a cerimônia de celebração do 74° aniversário de criação da Brigada de Infantaria Paraquedista (foto de arquivo)
CC BY 2.0 / Anderson Riedel / Palácio do Planalto /
Segundo Ramos, esses órgãos alegam motivos internos, como segurança dos agentes, para manter as informações indisponíveis por tempo indeterminado.
"Órgãos de segurança […] simplesmente entendem que resoluções internas se sobrepõem à LAI. Mas a LAI é uma legislação nacional que estipula muito claramente: uma vez findado o prazo do sigilo, o documento é automaticamente público. Mas isso não acontece", revelou Ramos.
Nesse contexto, a agência de dados independente Fiquem Sabendo entrou com processo na Justiça contra a ABIN, para garantir a transparência de documentos que já deveriam ser públicos. O processo também tem o intuito de gerar precedente legal para que os demais órgãos de segurança cumpram a letra da LAI.
Precisamos mudar a LAI?
Mesmo que os sigilos impostos durante a gestão Bolsonaro sejam eventualmente retirados, nada impede que a interpretação falaciosa da LAI se repita em futuros governos. Especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil, no entanto, alertam que alterar a legislação vigente não necessariamente é a melhor solução para evitar abusos.
"Num primeiro momento, mexer na legislação não é o caso. Precisamos estar estáveis e entender qual é a posição desse novo Congresso, por que, às vezes, abrir uma legislação para ser editada pode destruir essa norma", considerou Ramos.
Segundo ela, o Brasil tem uma das leis de acesso à informação mais avançadas do mundo, que conta com um portal da transparência premiado internacionalmente.
"O momento agora é de revisão. Saber quais documentos foram apagados, o que foi alterado nos sistemas, realizar auditorias nas caixas de e-mails [...] e conversar com a sociedade civil o tempo inteiro", propôs Ramos.
No início de novembro, o Palácio do Planalto informou que um vírus infectou sua rede de computadores, mas negou que documentos internos tenham sido comprometidos. Na ocasião, técnicos de informática do palácio receberam a orientação de deletar arquivos dos computadores da Presidência, conforme reportou o jornal Metrópoles.
O presidente Jair Bolsonaro (PL) e a primeira-dama, Michelle, descem rampa do Palácio do Planalto. Brasília, 17 de março de 2022
Documento da Fiquem Sabendo enviado à equipe de transição para o governo Lula 3, ao qual a Sputnik Brasil teve acesso, propõe uma auditoria nos sistemas do governo, nos dispositivos e discos rígidos, para identificar documentos que eventualmente tenham sido apagados.
Tamasaukas lembra que aqueles que violaram a Lei de Acesso à Informação devem ser punidos, como o são todos os cidadãos que descumprem a legislação: "Se as pessoas vandalizaram essa lei, elas têm que responder por isso", acredita Tamasauskas.
"Estamos falando de vândalos, e vândalos têm que ser tratados como tais. É necessário identificar conduta ilícita, rever o ato administrativo que indevidamente classificou determinadas informações como sigilosas e punir quem errou. Apurar e punir. Com vândalos, não há outra forma de atuar", concluiu o advogado.
A retirada de sigilos impostos durante o governo Bolsonaro foi tema recorrente da campanha presidencial e é objeto de análise no grupo sobre transparência no gabinete de transição para o governo Lula 3. No Brasil, a Lei de Acesso à Informação (LAI) é a principal base legal para a revisão dos atos, assim como a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).