Por que não há jogadores negros na seleção da Argentina?

Uma recente reportagem da mídia americana gerou forte polêmica devido à falta de jogadores negros na seleção argentina que disputará a final da Copa do Mundo no Catar.
Sputnik
"Por que a Argentina não tem mais jogadores negros na Copa do Mundo?" é o título de um artigo da professora adjunta da Universidade do Texas em El Paso Erika Denise Edwards, publicado no jornal The Washington Post.
"Ao contrário de outros países sul-americanos, como o Brasil, a seleção argentina é pálida em termos de representação negra", diz a nota, acrescentando que na Copa do Mundo de 2014 no Brasil, "observadores brincaram que até a Alemanha teve pelo menos um jogador negro, enquanto a Argentina parecia não ter nenhum durante a final da Copa do Mundo daquele ano".
Conforme a pesquisadora, segundo o censo de 2010, a população negra na Argentina é de 149.493 pessoas, o equivalente a 0,3% da população total. No caso do Brasil, por exemplo, a população chega a 54%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Apesar disso, a professora questiona a ideia de que a Argentina seja "uma nação branca", opinião que considera imprecisa e que "fala claramente de uma história mais longa de apagamento do negro no cerne da autodefinição do país".
A autora desmente os mitos de que a população negra do país teria morrido durante a guerra de independência no início do século XIX ou de febre amarela no final do mesmo século. Edwards salienta que o país sul-americano abrigou muitos negros durante séculos, embora tenha tentado "construir sua imagem de país branco".
Um funcionário levanta a bandeira da Argentina durante a preparação para a cúpula do G20 em Roma, Itália (foto de arquivo)
Alejandro Frigerio, antropólogo argentino e pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet), disse em entrevista à Sputnik que "a população afrodescendente atual existe, mas é pequena".
Uma distinção deve ser feita entre "pessoas marcadas racialmente cujo fenótipo seria classificado na sociedade como negro" e pessoas de ascendência africana, que são duas coisas diferentes. "Os afrodescendentes podem parecer brancos e não necessariamente ser rotulados como negros", explica. Esse grupo pode ser maior do que aqueles que se identificam como tal, porque o conceito de afrodescendente é recente, acrescenta Frigerio.
"No século passado havia uma ocultação de parentes negros porque não era bem visto ter avó ou mãe negra. Há muitos exemplos no quais há ocultamento na família da pessoa negro e por isso há muita gente que é afrodescendente, mas não sabe", afirma.
A explicação de por que há negros nas seleções de países como França ou Alemanha, diferente da Argentina, tem mais a ver, segundo Frigerio, com o fato de que no país latino-americano, "se há poucos negros fenotipicamente, a possibilidade de que cheguem à seleção em um país onde muita gente joga bem futebol, é pequena".
"Pode ser que alguns dos que compõem a equipe sejam afrodescendentes, mas eles próprios não sabem porque não está claro nas histórias familiares quantas pessoas têm avós ou bisavós negros", diz.
O jogador argentino Lionel Messi (à esquerda) corre ao lado do croata Josko Gvardiol durante partido entre Argentina e Croácia pela semifinal da Copa do Mundo de 2022, em Lusail, no Catar, 13 de dezembro de 2022

O uso da palavra 'negro' de forma discriminatória

Para Frigerio, "a Argentina é uma sociedade racista, ou uma sociedade que nega a questão racial". O antropólogo destaca o uso mais comum da palavra negro no país para se referir pejorativamente aos "pobres de classe baixa e com pouca escolaridade. Há um deslocamento da palavra negro de racial para classe social. Quando dizemos na Argentina desdenhosamente 'negros' dizemos que são pessoas que pertencem aos setores sociais inferiores".
Muitas dessas pessoas são também "menos brancas e menos europeias", ou seja, "o racial continua a atuar, mas subsumido ao social, da discriminação social, da estigmatização".

Peso da imigração europeia

Segundo Frigerio, a Argentina tinha uma população negra bastante grande no início do século XIX, quando representava cerca de 30% da população. O país, porém, teve uma imigração europeia e do Oriente Médio muito grande, o que reduziu a porcentagem negra na população argentina.
A isso se soma o processo de miscigenação, pois muitos dos que chegaram eram homens que se casaram com mulheres negras, ao que se soma a discriminação: "As pessoas não se identificavam socialmente como negras porque não era vantajoso, porque não era conveniente", explica o pesquisador detalhando um dos aspectos do racismo na Argentina.
Essa característica do país seria diferente da composição da população de outros países latino-americanos, onde não houve um processo tão forte de imigração europeia e do Oriente Médio, segundo ele. Por isso, no país patagônico, as palavras mestiço e mulato são pouco utilizadas. "Não temos palavras para classificar as pessoas que denotam mistura racial", afirma Frigerio.
"A palavra 'negro' é usada mais com referência ao social do que ao racial, ainda que o racial seja ocultado pelo social, porque as pessoas que classificamos como 'negras' não são fenotipicamente negras, mas não são tão brancas quanto as outras pessoas", aponta.
O jogador argentino Lionel Messi celebra um gol de Julián Álvarez na semifinal da Copa do Mundo do Catar de 2022, no estádio Lusail
Para Frigerio, essas pessoas são o que ele chama de "'insuficientemente brancos": uma pessoa que denota algum tipo de mestiçagem com a população ameríndia ou afrodescendente — ou ambas — que não é primordialmente descendente de europeus.
A presença dos jogadores negros nas seleções europeias se explica em grande parte porque esses países possuíam um grande número de colônias e, consequentemente, a proporção significativa da população de origem africana.
Em suma, no caso da Argentina, "houve uma grande imigração europeia e do Oriente Médio que inundou a população local e depois houve um processo de miscigenação e desidentificação social devido a esse desejo de ser europeu e de ser branco". A construção da nação argentina como europeia e branca é "uma imagem idealizada que não é real", conclui.
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