Sem consenso: por que há tanta polêmica envolvendo o uso de câmeras pelas polícias no Brasil?
14:13, 13 de janeiro 2023
O uso de câmeras de filmagem pelas forças de segurança pública do Brasil segue rendendo polêmicas. De um lado, analistas falam em mais segurança para as polícias e a população. Do outro, agentes alegam perseguição e desconfiança. O que está em jogo nessa disputa de narrativas? É possível chegar a um meio-termo?
SputnikAs forças de segurança pública do Rio de Janeiro e de São Paulo, dois dos principais estados brasileiros, decidiram se posicionar contra o uso de câmeras de filmagem por agentes policiais, retomando um debate que parecia superado após decisões, na Justiça, que determinavam o uso do equipamento.
Em ofícios enviados ao Supremo Tribunal Federal (STF), as polícias Civil e Militar do Rio de Janeiro apontam que as câmeras "mais expõem o agente do que preservam sua posição e atividade" e que "podem trazer insegurança para os policiais de unidades especiais e causar algum tipo de hesitação na tomada de decisão".
No início deste ano, o novo secretário de Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite, disse que uma de suas primeiras medidas
seria interromper o uso das câmeras pelas forças de segurança. Embora ele tenha sido desmentido pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), seus argumentos representam um
sentimento crescente dentro das polícias paulistas.
11 de janeiro 2023, 21:09
Mas, afinal, o que está em jogo com o uso dos equipamentos de filmagem e por que existem tantos policiais que são contra o projeto? Em entrevista à Sputnik Brasil, Guilherme Sines, pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Conflito, Cidadania e Segurança Pública (Laesp) da Universidade Federal Fluminense (UFF), explicou quais são os argumentos levantados por cada lado.
Agente pode se tornar mais passivo?
O Brasil tem um problema grave de violência urbana, exposto pela letalidade policial progressiva ao longo dos últimos anos. Em 2020 o país atingiu o maior número de mortes em decorrência de intervenções policiais desde que o indicador passou a ser monitorado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (
FBSP): foram 6.416 vítimas.
Com o quadro de racismo estrutural agravando a crise social brasileira e levando-se em consideração que 79% das vítimas da polícia militar são negras, buscou-se uma solução a partir do uso de câmeras de filmagem nos uniformes das forças policiais. Na teoria, a medida visava proteger os agentes e a população, sobretudo periférica, trazendo mais transparência.
Guilherme Sines explicou que, segundo pesquisas recentes, as consequências diretas do uso do equipamento de filmagem são "o aumento da segurança institucional, a celeridade nos processos que tramitam na Justiça e a redução do abuso da força e das denúncias falsas contra policiais".
Ele também citou que a letalidade policial caiu 72% no estado de São Paulo após a instalação das câmeras nos uniformes, de acordo com dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP) estadual.
Além disso, as câmeras têm um efeito grande na relação entre policiais e civis em ocorrências, "com redução de 28,5% na apresentação de acusações de desacato, desobediência ou resistência contra cidadãos; diminuição de 61,2% no uso de força (física, letal ou não letal); e queda de 6,2% no uso de algemas e realização de prisões", disse o analista, citando números de suas pesquisas.
"A premissa das câmeras é trazer transparência para o ato público, conforme diversas parcelas da sociedade estão reivindicando. Entretanto a segurança pode diminuir nos grandes centros urbanos porque pode haver uma passividade das forças policiais. Com as câmeras, o policial é obrigado a dar ocorrência na delegacia, e o agente pode se tornar mais passivo com isso, evitando intervir em conflitos."
Problema não é só a ocorrência
Assessor de imprensa da Polícia Militar do Rio de Janeiro, o major Ivan Blaz chegou a dizer, em uma
entrevista no ano passado, após a determinação para o uso dos dispositivos, que "o equipamento
é uma ferramenta de trabalho que garante segurança jurídica para os policiais e transparência para a sociedade".
No entanto o que se viu foram numerosas queixas, sobretudo dos agentes de segurança que fazem patrulhas nas ruas. Muitos apontam o caráter de inquisição das câmeras, relatando que perderam sua privacidade e estão sendo monitorados constantemente.
Eles alegam que as câmeras, por ficarem ligadas praticamente durante todo o serviço, registram até mesmo conversas pessoais, muitas vezes com esposa ou filhos. Segundo Guilherme Sines, as câmeras inserem novas peças em um tabuleiro complexo, pois "geram temor sobre possíveis punições por ações indevidas ou inação do agente".
O problema, dizem eles, é que nem sempre os agentes estão atendendo a ocorrências, e, como a câmera fica ligada, já
existem policiais que foram punidos até mesmo por "falar mal" de um superior durante uma conversa gravada com um colega de patrulha.
Justiça e patrulhamento
Secretário de Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite entende que "o agente deve ligar a câmera exclusivamente no momento da ocorrência". Em entrevista a um podcast, ele explicou que, em muitas ocorrências, o patrulheiro que busca um criminoso recebe informações de um morador de favela.
No entanto, com as gravações, as denúncias diminuíram consideravelmente, principalmente pelo medo que a população tem de represálias de traficantes.
Segundo ele, como a legislação brasileira "não protege o policial", as câmeras servem apenas para criar dúvidas em um tribunal, como nos casos de bandidos que fogem durante uma abordagem, jogando fora armas e drogas.
"Como provar que a arma era dele se a câmera não mostra ele jogando a arma fora?", questionou.
Guilherme Sines, ao citar os receios da policia, disse que os agentes se sentem fiscalizados, "vigiados constantemente, sobretudo pela corregedoria". Além disso, a imagem pode se "transformar em uma testemunha contra o agente", e isso restringe a sua iniciativa, "tornando sua atividade tolhida".
Essa, para ele, é uma das razões pelas quais o Batalhão de Operações Especiais (Bope) e a Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) se manifestaram contra os equipamentos.
"A preocupação é o sigilo da informação, sobretudo do que será usado nos processos internos da polícia. O receio é que certas técnicas sejam divulgadas com as gravações, e isso pode impedir o sucesso das operações especiais, porque os criminosos podem adotar contramedidas", afirmou.
O especialista em segurança pública aponta que embora a informação das gravações seja bem protegida, os receios acerca do seu uso fazem parte de uma cultura dentro das polícias e do sistema de segurança pública do Brasil. Além de ser uma iniciativa considerada recente, é preciso compreender que o Brasil "tem uma sociedade e uma polícia diferentes da norte-americana e da europeia".
"Nos EUA, o policial pode mediar uma situação e isso não ir parar em uma delegacia. Isso é uma diferença importante para analisar o caso brasileiro", defende ele, acrescentando que embora haja pontos positivos com a medida, é preciso compreender que as realidades são distintas e que "no Brasil sequer existe equipamento para todos os agentes".
"A política das câmeras não é em si uma panaceia que descontinuará décadas de uma cultura das polícias e da política pública do estado do Rio de Janeiro. Entretanto, se eles forem aplicados corretamente, esses dispositivos devem melhorar estatísticas sociais importantes, [...] [fato que estaria representado na] redução da letalidade policial e das ocorrências com abuso da força", concluiu.