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Influenciadores digitais: a democracia brasileira sobreviverá aos emissários do caos?

O Brasil tem mais de 500 mil influenciadores digitais em busca da sua atenção. Para eles, cada clique, visualização ou curtida significa dinheiro. Em uma terra sem lei, quem fiscaliza os criminosos? Nesta reportagem, a Sputnik Brasil mostra a diferença entre jornalismo e alarmismo digital, analisando os riscos que assombram a democracia brasileira.
Sputnik
O instituto Nielsen estima que o Brasil tem mais de 500 mil influenciadores digitais atualmente, pessoas que têm pelo menos 10 mil seguidores em suas redes sociais e vivem desse mercado. Eles trabalham em perfis próprios e em parceria com diferentes marcas, promovendo estilos de vida, produtos e serviços e atraindo, com isso, milhões de seguidores.
O documentário norte-americano "O Dilema das Redes", lançado em setembro de 2020, com depoimentos das principais figuras do Vale do Silício, deixa claro o que acadêmicos já vinham alertando: há maldade no modus operandi das principais redes sociais, cujos algoritmos visam à polarização das sociedades para capitalizar com o tempo em que as pessoas passam imersas no mundo digital.
Imagem da bandeira nacional em mobiliário vandalizado por bolsonaristas radicais na invasão do Palácio do Planalto de 8 de janeiro de 2023, em Brasília (DF)
É nesse ambiente hostil, caracterizado pela ausência da aplicação da lei, que milhares de produtores de conteúdo digital brasileiros buscam ganhar a vida criando novas formas de entretenimento. Nesta reportagem, ao tratar dos desdobramentos desse fenômeno, a Sputnik Brasil deixa claro que é preciso separar o joio do trigo. Ou seja: não se pode confundir o trabalho dos honestos com o dos irresponsáveis, que agem à margem da lei em benefício próprio.

Quem são os emissários do caos?

O mercado de trabalho digital é regido pelos algoritmos das gigantes mídias sociais. Professor de comunicação e jornalismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Paulo Vaz explicou que, para seduzir as multidões em meio à concorrência de milhares, a venda de falsas narrativas envolvendo política, assim como análises simples para problemas complexos, revelou-se um "mercado" de verdadeiro sucesso.
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A monetização do YouTube, por exemplo, é feita pela exibição de anúncios durante os vídeos. A cada exibição uma parte do valor vai para a plataforma, a outra é do "canal parceiro". Além disso, o dono do canal precisa respeitar algumas condições para a monetização, como alcançar 10 mil visualizações totais e manter mil inscritos. O Edelman Trust Barometer, estudo global sobre confiança e credibilidade, apontou que 63% dos consumidores confiam mais no que os influenciadores dizem do que nas empresas que divulgam o mesmo material.
"Os influenciadores dão aquilo que as pessoas querem ouvir", relata Paulo Vaz, apontando que essa é uma das maiores (e mais claras) diferenças entre os comentaristas digitais e o jornalismo tradicional. O problema é que essa prática, na avaliação do especialista, criou uma "sociedade extremamente polarizada" no Brasil e no mundo, cuja principal característica é a "coexistência de diversas realidades dentro de uma só".
Para ele, este é o grande problema dos influenciadores digitais interessados em fazer dinheiro nas redes às custas da ignorância, natural, das pessoas sobre determinados assuntos: a desconexão da sociedade. O analista ainda aponta que, dentro desse universo, "nenhum desses produtores de conteúdo, ou mesmo seus canais, têm responsabilidade ou sofrem crises de reputação por dizer mentiras. Em suma, a credibilidade deles simplesmente não é afetada".
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O especialista relembrou, como exemplo, dados do instituto Atlas que estimam que, no Brasil, "90% dos eleitores do [ex-presidente Jair] Bolsonaro acreditam que a eleição foi roubada. Apenas 55% dos brasileiros acham que o [Luiz Inácio] Lula [da Silva] ganhou". Para Paulo Vaz, essas pessoas vivem em "outra realidade", e "se antes as empresas de jornal eram poucas, hoje esse universo de 500 mil pessoas muda tudo, ao propor centenas de realidades paralelas".

Não é apenas sobre política...

As críticas sobre conteúdos mentirosos ou falsos muitas vezes se confundem com censura, levando a discussão sobre o trabalho dos influenciadores para o campo denotativo da liberdade de expressão. E enquanto as mídias digitais revelam extrema incapacidade para combater conteúdos chamados negacionistas, seja por negligência ou por interesse econômico, o que se nota, de modo concomitante, é a notória queda de confiança na imprensa por parte da população.
Paulo Vaz avalia que críticas à imprensa tradicional sempre existiram e vão existir, mas "é também um fato que os grandes veículos de mídia são parte fundamental dos alicerces da democracia". O problema, diz ele, é que se "esta é uma sociedade em que as pessoas são livres para acreditar no que quiserem", portanto é natural que "as pessoas passem a escolher as informações que elas querem a partir de uma identificação ideológica".
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Isso significa que alguns produtores de conteúdo digital, principalmente aqueles que trabalham com assuntos políticos, médicos e climáticos, "substituíram as obrigações dos jornalistas, que têm responsabilidade e convivem com as exigências de um veículo de imprensa que vive de credibilidade".
Os influenciadores sociais, por outro lado, diz ele, não precisam disso, pois "suas fontes de receita não derivam de fatos comprovadamente verídicos", mas de opiniões destinadas a agradar a um segmento da sociedade. "Esse sistema, no qual o jornalismo tinha responsabilidade de constituir os fatos, foi perdido", e ainda não é possível determinar com precisão o futuro da imprensa.
Para Paulo Vaz, o jornalismo tradicional está de fato ameaçado com as mudanças em curso. Citando um estudo do comunicólogo Yochai Benkler, ele explicou que existe a possibilidade "de não voltarmos para uma realidade partilhada, e a sociedade, nesse caso, continuaria vivendo nas bolhas de realidades paralelas, com interpretações distintas da mesma realidade", e com as mídias tradicionais inclusive se adaptando às narrativas de ocasião para agradar a nichos.

Quem vigia os criminosos?

As críticas e o quadro traçado pelo comunicólogo da UFRJ esbarram nos anseios do sistema judiciário brasileiro, que enfrenta uma corrida frenética para se adaptar às mudanças impostas pelo advento das mídias sociais. Enquanto multiplicam-se os crimes digitais e suas infinitas variações e reflexos na sociedade, juristas e legisladores tentam encontrar o arcabouço de leis ideal para cessar práticas indevidas.
Embora alguns apontem que, com o tempo, o mercado ajustará suas próprias falhas, banindo os criminosos e os influenciadores de má-fé, e que a sociedade passará por um período de valorização da verdade, do jornalismo e das instituições republicanas, o advogado criminalista e especialista em crimes cibernéticos Felipe Laforet defende que é preciso consolidar alguns pontos.
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Para ele, o problema das redes pode ser comparado à questão ambiental no Brasil, cujas leis são atualizadas e abrangentes, mas pouco aplicadas. Como exemplos, Laforet citou o Marco Civil da Internet, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), e as tratativas para a aprovação de uma lei contra as fake news (Projeto de Lei 2630/2020) no Senado. "Mas falta fiscalização", alertou.
Some-se a esse cenário milhares de influenciadores que, pela natureza de seu ofício, estão vendendo polêmicas e falsas promessas para ter um clima, como apontou o analista, de "velho oeste" inevitável, uma "verdadeira terra sem lei". Felipe Laforet inclusive apontou que "os crimes digitais estão explodindo no Brasil", existindo "uma ligação desse submundo digital com as fake news. São mercenários da Internet: pessoas contratadas para espalhar fake news", disse ele.

"O Brasil não tem um órgão que vigia e proíbe alguém de espalhar fake news. Fica uma coisa solta. Não há meios eficazes de combater as fazendas de disparos. E quando isso fica na mão do provedor, isso é muito insuficiente. São atores privados que têm interesses próprios, que são oriundos de países que também têm interesses próprios. Quem vai regular as redes sociais é um ente estrangeiro?", questionou.

A quem interessa a polícia de opinião?

Diante da afirmação de que uma empresa norte-americana não deve se regular e, com efeito, responder às leis do Brasil, a Sputnik Brasil perguntou ao advogado criminalista se Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), deveria ser o responsável por esse controle, determinando que contas sejam derrubadas e as pessoas, presas.
Ele disse que essa questão é "muito complexa". Para o criminalista, o inquérito das fake news, por exemplo, presidido pelo ministro, é ilegal, pois fere o regimento da Corte. Entretanto é também notório que o STF se uniu em torno dessa investigação, "sobretudo diante da escala de ataques contra o Poder Judiciário", dando respaldo às decisões de Moraes diante da "inércia da Procuradoria-Geral da República [PGR] e do Ministério Público [MP]".
Homem quebra janela do Palácio do Planalto durante manifestação em Brasília, em 8 de janeiro de 2023
Assim como não é possível para um país democrático conviver com o xerife da verdade, não é possível imaginar o futuro das democracias modernas sem um controle sobre o que é publicado nas redes. Como exemplo, o advogado consultado pela Sputnik Brasil relembrou casos de golpes, pirâmides e notórias fake news que foram criadas com o objetivo único de corroer o sistema vigente.

"Se você tem um cara falando de cloroquina, tudo bem, é uma besteira e é o direito dele. Mas a Justiça precisa atuar sobre a infraestrutura deste canal ou desta conta, reduzindo o seu alcance e, consequentemente, sua forma de gerar receita. As fazendas de disparo é que precisam ser combatidas, e não a opinião", apontou.

A solução para encerrar a sensação de que as pessoas estão vivendo realidades distintas, defende ele, é compreender que o conceito de liberdade de expressão, herdado da jurisprudência dos EUA e exposto recentemente por uma série de figuras, incluindo o jornalista norte-americano Glenn Greenwald, não foi pensado para os desafios das sociedades modernas. Ou seja, liberdade de expressão não significa liberdade para publicar qualquer coisa.
Apoiadores de Jair Bolsonaro (PL) invadem o Congresso Nacional em protesto contra a eleição de Lula (PT), empossado em 1º de janeiro de 2023. Brasília, 8 de janeiro de 2023

A polícia de opinião

Para além dos crimes digitais mais latentes, como golpes financeiros, roubo de propriedade intelectual, plágio e esquemas de pirâmide, a verdadeira dificuldade em combater os criminosos nas redes reside na discussão sobre o que é opinião, um direito constitucional em democracias ocidentais, e o que é uma tentativa deliberada de espalhar o caos por meio de informações distorcidas.
Christopher Mendonça, analista político do Ibmec, defende um conceito de liberdade de expressão amplo, mas com restrições. "As pessoas têm o direito de ficar insatisfeitas, o que não pode é pregar golpe com sua influência. Assusta muito as pessoas fazendo lives dentro do Planalto", disse ele ao relembrar os eventos do 8 de janeiro, em Brasília (DF), e traçar uma linha entre o que é democrático e o que claramente foge às regras do jogo.
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Assim como Felipe Laforet, o analista político entende que o Brasil dispõe de um conjunto de leis para combater os crimes digitais que é abrangente, mas ainda há problemas na fiscalização. Para ele, o peso que as redes assumiram nas democracias modernas, sobretudo após a Primavera Árabe, precisa ser debatido amplamente, principalmente pelo impacto que os influenciadores digitais tiveram nos eventos do dia 8. No entanto, diz ele, é preciso cuidado com as armadilhas da ditadura do pensamento.
Kárita Sena, pesquisadora da Universidade Estadual Paulista (Unesp) na área da comunicação pública, explicou que a questão das liberdades nas redes, assim como as narrativas de que proibições excessivas são uma espécie de censura moderna, são argumentos que fogem da complexidade do debate envolvendo os limites das redes sociais e o trabalho dos produtores de conteúdo. Para ela, não se trata de "cair no canto do autoritarismo", mas de proteger a democracia recente do Brasil.
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Ela explica que a financeirização dos algoritmos, "tocada a partir de um modelo de negócios regido pela racionalidade neoliberal, que visa à acumulação do capital e com normas pautadas na competição, converte pessoas em dados para gerar lucros". Isso significa que as relações entre os usuários nas redes "foram mercantilizadas", criando filtros, nichos e bolhas comunitárias.

"É como estar em uma sala cheia de gente e ninguém se entender. Isso acirrou a polarização, pois os grupos vão se isolando", disse.

Segundo a pesquisadora, desde 2013, quando ocorreu a Primavera Árabe, não há progresso sobre o tema, apenas retrocessos, em várias partes do mundo. Sena citou a profusão de grupos que subvertem temas históricos, como o Holocausto e o nazismo, o racismo e a ditadura militar do Brasil. Para ela, a democracia, hoje, definitivamente "está mais ameaçada do que a liberdade de expressão. É exatamente assim que as democracias morrem", concluiu.
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