Panorama internacional

Analistas: visita de Lula ao Uruguai tenta remediar 'fratura' no Mercosul herdada de Bolsonaro

Nesta quarta-feira (25), o presidente Lula esteve com o presidente uruguaio, Luis Lacalle Pou, em Montevidéu. O principal tema discutido entre eles foi a intenção anunciada pelo Uruguai de negociar com a China ao largo do Mercosul. A Sputnik Brasil ouviu três especialistas para discutir como o Brasil tenta remediar a situação dentro do bloco.
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O Uruguai voltou a anunciar que tem a intenção de negociar um acordo comercial diretamente com a China, gerando protestos da vizinha Argentina e preocupação dentro do Mercosul. Diante da situação, o chefe de Estado brasileiro declarou durante a visita ao país vizinho que é favorável a um acordo entre o Mercosul e o país asiático, como uma forma de atender aos interesses de Montevidéu. Luiz Inácio Lula da Silva esteve no Uruguai após visitar a Argentina no dia anterior e participar de reunião da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC).
Em entrevista à Sputnik Brasil, Alessandra Maia, cientista política e professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), afirma que o Uruguai já estava isolado na região desde antes da sucessão presidencial no Brasil. Para ela, essa situação é consequência de uma política internacional "isolacionista" adotada pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro na região. Maia aponta que foi nesse contexto que surgiu a posição uruguaia de buscar parcerias diretas com a China.

"Isso é algo que agora está sendo recuperado com a visita do presidente Lula à Argentina [e Uruguai]. É um novo momento para esse diálogo com os países do Mercosul. Acho que eles [países do Mercosul] estão, sim, isolados entre si pelo que foi provocado pelo governo Bolsonaro, que era um governo isolacionista [...]. Acho que isso agora está em franca mudança. Então ainda é cedo para a gente afirmar que, enfim, o Uruguai vai continuar nesse caminho", avalia a pesquisadora.

Já o cientista político Leonardo Paz, analista de inteligência qualitativa no Núcleo de Prospecção e Inteligência Internacional da Fundação Getulio Vargas (FGV NPII), considera que as negociações anunciadas entre China e Uruguai não são boas para o Mercosul. "Não é simplesmente alguém estar incomodado com a maneira pela qual o bloco funciona e sair fazendo negociações unilaterais à revelia do bloco, isso eu acho que é problemático", afirma à Sputnik Brasil.
Lula (à esquerda) conversa com o presidente argentino, Alberto Fernández, durante encontro em Buenos Aires, em 23 de janeiro de 2023
Nesse sentido, a pesquisadora Denilde Holzhacker, professora da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) de São Paulo, ressalta que o Mercosul tem regramentos que preveem a necessidade de negociações conjuntas.

"Essa situação é uma situação que levaria a um questionamento sobre a existência do próprio bloco, porque uma das vantagens do bloco na negociação é que você consegue ter uma tarifa comum. Então se você tem um país que tem um acordo preferencial de comércio com um terceiro, que vai ter acesso também às preferências do Mercosul, isso pode criar um desvio de comércio, pode gerar um desequilíbrio comercial, e a gente está falando de um país do tamanho da China, que já é um parceiro comercial importante de todos os países do Mercosul", avalia a pesquisadora em entrevista à Sputnik Brasil.

Apesar disso, a especialista aponta que a conjuntura política e econômica regional, na qual o Brasil sob Bolsonaro deixou de apoiar a integração e o fortalecimento do Mercosul, levou o Uruguai a buscar alternativas. "Então cria uma fratura, leva a um questionamento sobre a existência do bloco ou a permanência do Uruguai como membro do acordo", afirma.

Lula tenta mostrar que Mercosul ainda é vantajoso

Para a pesquisadora Alessandra Maia, o quadro regional tende a mudar com o início do governo Lula, "uma das vozes mais respeitadas" internacionalmente, segundo ela. "Eu diria que a bússola está a favor do Brasil e, nesse sentido, também da própria existência do Mercosul".
Apesar de ressaltar que "a simples presença de Lula" não resolve, o analista Leonardo Paz acredita que "o peso político" do presidente brasileiro pode fazer diferença nas negociações internas do bloco sul-americano. É nesse sentido que a professora Denilde Holzhacker avalia que a política internacional de Lula tende a "diminuir a pressão e a possível necessidade dos outros países [do Mercosul] de buscarem outros parceiros". A pesquisadora recorda que as ameaças de fraturas no bloco sempre existiram e que nos anos 1990 a Argentina também buscou se aproximar comercialmente dos Estados Unidos.

"Acho que o Brasil não só precisa reafirmar a necessidade da união entre os países — porque o Mercosul continua existindo —, mas dar um sentido ao Mercosul, um sentido econômico de fato, que traga benefícios para esses países", aponta, ressaltando que o cenário de desaceleração econômica na região dificulta esse processo.

Líderes da América Latina se reúnem durante encontro da CELAC, em Buenos Aires, na Argentina, em 24 de janeiro de 2023
Para Holzhacker, são essas dificuldades que fizeram com que Lula sinalizasse, durante a visita à Argentina e ao Uruguai, a possibilidade de investimentos do Brasil via parcerias, assim como o aceno pela criação de uma moeda comum.
Segundo a pesquisadora, essa é uma forma de mostrar que a continuação no bloco é vantajosa e de proteger os interesses brasileiros dentro de uma "lógica desenvolvimentista", uma vez que o Mercosul fortalece a posição regional do Brasil e é visto como um ponto importante para a internacionalização brasileira.

"No contexto que nós temos hoje, em que há uma busca de regionalização e construção de cadeias regionais, o argumento do Brasil ganha força porque não fortaleceria somente o Brasil, mas também os outros países. Porém é uma situação que ainda depende que o Brasil sinalize não só com discursos, mas com ações", analisa a pesquisadora.

Leonardo Paz avalia que o Mercosul, além do acordo com a União Europeia, tem espaço para expandir negociações com diversos países, como Canadá, Coreia do Sul, Cingapura e Japão, entre outros. Para o pesquisador, "já passou um pouco do tempo" de o bloco avançar em sua cobertura de livre-comércio.
Bandeiras dos países-membros do BRICS durante encontro de cúpula na China, em 4 de setembro de 2017
A Sputnik Brasil questionou o Itamaraty sobre a questão comercial envolvendo o Uruguai e o Mercosul, mas não recebeu respostas até a publicação desta reportagem.
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