Panorama internacional

Com balões, EUA tentaram 'inflar' para o mundo sua ideia de 'ameaça militar chinesa', diz analista

A indicação precipitada norte-americana de que os balões seriam de espionagem chinesa mostram que o caso tem como pano de fundo as divergências ideológicas entre as duas potências, a guerra comercial, as tensões sobre Taiwan e a luta por uma nova ordem mundial.
Sputnik
Ontem (16), o "mistério" que envolvia os balões que sobrevoaram o espaço aéreo dos Estados Unidos foi em partes esclarecido pelo presidente, Joe Biden, quando após duas semanas, o mandatário finalmente veio a público para falar sobre o caso.
Segundo Biden, os balões não fazem parte do programa de espionagem da China, como tinha sido apontado por Washington anteriormente, e a inteligência do país "ainda está avaliando todas as três incidências", conforme noticiado.
Quando o primeiro balão foi divulgado pelo Pentágono, em 2 de fevereiro, a chancelaria chinesa lamentou o ocorrido e disse que o equipamento era para uso de pesquisa meteorológica, e que o mesmo invadiu o espaço aéreo norte-americano "por força maior".
Na quarta-feira (15), Pequim disse que que balões de alta altitude dos Estados Unidos sobrevoaram as regiões de Xinjiang e Tibete.
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Para Qian Yasui, cientista político do Centro de Estudos Norte-Americanos da Universidade de Southwestern Jiaotong entrevistado pela Sputnik, o que começou como um incidente de balão meteorológico terminou em um teatro montado pela Casa Branca para culpar Pequim, mais uma vez, por representar uma ameaça ao mundo por seu suposto trabalho de espionagem.
"A razão pela qual os Estados Unidos estão promovendo este incidente é, sem dúvida, alcançar objetivos de defesa contra a chamada 'ameaça militar chinesa'", disse Qian.
A resposta norte-americana ao assunto foi derrubar o balão e os outros objetos que estavam no Alasca e no Canadá. A China considerou a ação "um exagero" e prometeu retaliação pelo ocorrido.
O Serviço Meteorológico Nacional dos Estados Unidos (NWS) reconhece que balões meteorológicos podem subir até mais de 20 milhas. O balão chinês derrubado pelas forças americanas pairava cerca de 20 quilômetros acima do solo. Além disso, o NWS aponta que esses tipos de aparelhos aéreos são lançados diariamente de 900 lugares diferentes no mundo.
O mesmo foi dito por Biden ontem (16), quando afirmou que "uma série de entidades, incluindo países, empresas e organizações de pesquisa, operam objetos em altitudes para fins que não são nefastos, incluindo pesquisas científicas legítimas".
O cientista político ressalta que "a velocidade de vôo de balões de alta altitude [como balões meteorológicos] é muito baixa e as condições climáticas podem transportar objetos para longe de seu alvo pretendido. Sendo assim, todos esses 'balões de reconhecimento' [espiões] nada mais são do que objetos meteorológicos civis".
Marinheiros responsáveis pela recuperação de balão da China que sobrevoou os EUA, ao largo da Myrtle Beach, Carolina do Sul, EUA, 5 de fevereiro de 2023
Portanto, para Qian, Washington "está inflando" um incidente de ar de balão que foi exclusivamente para fins científicos em um cenário diplomático prejudicial para a restauração das relações bilaterais: "Isso prejudica o rumo de eliminação das tensões bilaterais traçado pelos presidentes Joe Biden e Xi Jinping durante seu encontro em Bali no final do ano passado", relembra.
Mesmo não se tratando de "guerra comercial", é nesse campo que as duas potências duelam após acontecimentos geopolíticos que são julgados hostis entre elas. Na semana passada, os EUA sancionaram seis empresas chinesas ligadas a uso de "balões espiões".
Já ontem (16), Pequim sancionou as gigantes americanas da indústria bélica Lockheed Martin e Raytheo. Apesar de terem citado Taiwan na justificativa, o atual contexto no geral colabora para decisão, visto que as empresas são gigantes bélicas norte-americanas.
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Washington tem medo da proposta geopolítica de Pequim

Michelle Calderón, professora de estudos asiáticos e especialista em China da faculdade Colegio do México (COLMEX), também entrevistada pela Sputnik, diz que nesta década do século XXI, as relações entre as duas nações "estão em uma encruzilhada e têm um equilíbrio precário".
A encruzilhada acontece justamente por conta da codependência comercial entre os dois – apesar de cada vez mais se tornarem inimigos na esfera política e militar. Ainda hoje, os Estados Unidos dependem em grande parte das manufaturas chinesas e a China depende de milhões de investimentos americanos.
"O sucesso do modelo econômico chinês se deve, entre outras coisas, à abertura ao investimento estrangeiro, muitos deles dos Estados Unidos. Por outro lado, a economia dos Estados Unidos também se beneficiou, já que empresas e investidores migram para a China por custos trabalhistas baixos e serviços cada vez melhores. Ao contrário da União Soviética e dos Estados Unidos na Guerra Fria, neste caso não é possível romper os laços de interdependência sem colocar em risco a economia global", ressalta a professora.
Na visão de Calderón, existe um projeto norte-americano para que Pequim não surja como potência, e também com uma nova proposta geopolítica. A professora relembra quando em 18 de outubro de 2022, o secretário de Estado dos EUA, Anthony Blinken , deixou de lado os discursos diplomáticos e as evasivas ao reconhecer que Pequim é uma ameaça aos interesses da Casa Branca.
O ativista Patrick Mahoney segura dois balões brancos enquanto protesta contra o governo chinês sobre o suposto balão de vigilância chinês que foi abatido sobre os EUA na semana passada, durante uma manifestação do lado de fora da Embaixada da China em Washington, 15 de fevereiro de 2023
Na ocasião, o principal diplomata do governo Biden admitiu que o país tem "interesse em liderar" a ordem internacional contra aquela que considera sua maior ameaça: a República Popular da China, a qual, segundo ele, propõe uma ordem "profundamente antiliberal".
"Na estratégia de segurança nacional de Biden, Pequim se posiciona como uma ameaça nas esferas militar e econômica, mas isso não é novidade, o mesmo aconteceu com Trump e Obama, cada um com suas nuances. Não esqueçamos que a construção da imagem da China como uma ameaça tem sido amplamente divulgada na mídia, então essa retórica agressiva tem raízes profundas entre a população americana. Por isso, muitos setores sociais [dos EUA] esperam uma resposta ainda mais drástica de seu governo aos supostos ataques da China", explica Calderón.
A narrativa anti-China é tão exacerbada em regiões dominadas pelo conservadorismo e pelo Partido Republicano, que no Texas, por exemplo, está sendo elaborado o projeto de Lei SB 147 de novembro de 2022, o qual visa proibir cidadãos de origem chinesa de comprar propriedades no estado por motivo de "segurança nacional".
O representante do estado do Texas, Gene Wu, o prefeito de Houston, Sylvester Turner, e os representantes dos EUA Al Green e Sheila Jackson Lee participam de um protesto em Houston, Texas, contra um projeto de lei que proibiria cidadãos chineses de comprar propriedades no Texas, em 11 de fevereiro de 2023
Qian complementa a visão de Calderón quando diz que o caso dos balões, que foram divulgados pelos norte-americanos como sendo objetos de espionagem chinesa, vai de encontro a essa narrativa de que a China é uma ameaça e precisa ser combatida.

"Estes [os balões] não são incidentes isolados. Tomemos, por exemplo, o recente acesso dos EUA a quatro bases militares nas Filipinas. Tudo isso faz parte de uma preparação pré-planejada para operações no mar do Sul da China. Washington espalha rumores que impedem o desenvolvimento das relações sino-americanas. É preciso dizer que esses jogos com a opinião pública e a crescente ameaça real dificilmente terão um impacto positivo nas relações bilaterais", concluiu o especialista.

O fato é que, em meio a todo esse contexto de tensões bilaterais, os supostos balões espiões chineses compõem uma leitura simplista e de difícil comprovação, longe de ser adequada para entender os bastidores do poder geopolítico de ambos os países, complementa Calderón.
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