Panorama internacional

Historiador: pela paz mundial, OTAN deveria ter sido desmantelada após fim da Guerra Fria

À Sputnik Brasil, historiador afirma que a expansão da OTAN é uma ameaça à paz. Segundo ele, nos anos 1990, havia uma grande oportunidade de integração da Rússia a um sistema de segurança europeu, que garantiria efetivamente a segurança e estabilidade regional e global. Mas o Ocidente escolheu outro caminho.
Sputnik
Grande tema do cenário internacional, o conflito na Ucrânia tem representado uma grande divisão entre as principais potências, com países como Estados Unidos e seus aliados na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) cada vez mais envolvidos nos esforços de combater a Rússia dentro e fora do campo de batalha.
Estima-se que o conflito já tenha provocado um grande número de baixas, e, embora nos últimos tempos tenha sido observado um engajamento maior de países como Brasil, China e Turquia em busca de soluções para a crise, não há no horizonte indícios do fim das hostilidades.
Em entrevista à Sputnik Brasil, Sidnei J. Munhoz, professor do programa de pós-graduação em história da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e autor de "Guerra Fria: história e historiografia", explica que o conflito atual está diretamente ligado à decisão do Ocidente de não desmantelar a OTAN ao fim da Guerra Fria.
Munhoz afirma que no espaço geopolítico conhecido hoje como "mundo ocidental" a ação dos EUA a milhares de quilômetros de seu território "é naturalizada como associada à defesa de uma certa comunidade internacional", enquanto qualquer ação da Rússia, mesmo que nas adjacências de suas fronteiras, é tipificada como um ato de agressão.
O historiador é crítico do que classifica de "operação colossal" implementada pela Rússia na Ucrânia, porém ele acredita que a raiz do conflito foi semeada anos antes.
"A Rússia iniciou uma colossal operação de guerra e invadiu a Ucrânia, um país soberano", argumenta o especialista. "Agora, isso nos diz tudo? É a Rússia uma vilã que resolveu abocanhar a Ucrânia? Essa guerra poderia ser evitada? Do meu ponto de vista, a expansão da OTAN foi o elemento desencadeador do conflito."
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Ele acrescenta que somada a isso está a irresponsabilidade do governo do presidente ucraniano, Vladimir Zelensky, "ao açodadamente tentar arrastar a Ucrânia para o campo da aliança militar inimiga do poderoso vizinho (a Rússia), colocando em risco toda a Ucrânia".
Munhoz afirma que o conflito vigente tem uma macrodimensão que extrapola a região e tende a adquirir uma magnitude global, pois, em sua análise, EUA e OTAN estão dispostos "a manter o conflito indireto com a Rússia, a despeito da destruição da Ucrânia e da possibilidade de expansão desmesurada do conflito". "Em uma linguagem mais popular, poderia dizer que os EUA e a OTAN estão dispostos a manter e a financiar o conflito na região até o último combatente ucraniano", diz Munhoz.
O historiador defende que a atual situação era "perfeitamente evitável" e cita as perspectivas expressas por Jack Matlock, embaixador dos EUA em Moscou durante as gestões de Ronald Reagan e George H. W. Bush (1987–1991), em um artigo intitulado "I was there: NATO and the origins of the Ukraine crisis" ("Eu estava lá: a OTAN e as origens da crise na Ucrânia", em tradução livre) e em uma entrevista concedida ao programa Democracy Now! em fevereiro de 2022, que fazem um paralelo entre a Crise dos Mísseis e o início do conflito na Ucrânia.

"O ex-embaixador destaca que, apesar das promessas efetuadas a [Mikhail] Gorbachev [ao fim da Guerra Fria], as coisas desandaram, pois o Ocidente seguiu um caminho que pode ter sido interpretado pela Rússia como uma ameaça. Matlock realça que, no fim dos anos 1990, ele depôs em uma comissão do Senado dos EUA e insistiu que a expansão da OTAN não contribuía para a segurança da Europa e nem dos EUA. Em sua exposição, Matlock enfatiza que essa expansão representava uma ameaça global, pois poderia desencadear uma nova corrida armamentista, inclusive no âmbito nuclear."

Munhoz destaca que o ex-embaixador previu que a adesão de novos países à OTAN geraria uma Europa novamente dividida. Diante disso, para garantir a segurança europeia, era necessária "a criação de um sistema de segurança europeu, com a Rússia integrada".

"Esse é um ponto que eu considero nodal, e há tempos insisto nele. Para mim, na década de 1990, o mundo perdeu uma grande oportunidade de integrar a Rússia a um sistema de segurança europeu. Enfatizo que um sistema como esse contribuiria muito para a paz regional e global, enquanto a expansão da OTAN está a nos encaminhar a uma possibilidade de confronto de dimensões globais", destaca Munhoz.

Somado a isso, desde o fim da década de 1990, com o fim da União Soviética e da Guerra Fria, "os EUA passaram a interferir em países da antiga órbita soviética".

"Aqui é imperioso ressaltar que países que haviam feito parte da antiga União Soviética foram incorporados à OTAN, alguns por desejo próprio, outros seduzidos por promessas nem sempre exequíveis."

Munhoz acrescenta que, com a expansão crescente da OTAN, ao fim da Guerra Fria, "o mundo assistiu à expansão da esfera de influência estadunidense".

"Nesse campo, é extremamente importante observar que, ao fim da Guerra Fria, era de se esperar que a OTAN, criada em 1949 sob o argumento de fazer frente à ameaça soviética, poderia e deveria ser desmantelada. Quando a antiga rival deixou de existir, no entanto, não foi isso que aconteceu. Ao contrário, assistimos perplexos à expansão da OTAN em direção às áreas outrora pertencentes ao antigo Império Russo e à sua sucessora, a União Soviética", afirma o historiador.

O especialista sublinha que sua percepção converge com a de Andrew J. Bacevich, historiador americano especializado em relações internacionais e ex-combatente no Vietnã e na Guerra do Golfo.
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"Bacevich entende que a OTAN é obsoleta e onerosa e que a sua perpetuação e expansão não significa garantia de segurança à Europa, mas, ao contrário, contribui para a expansão dos conflitos na região e no planeta."

Narrativas com dois pesos e duas medidas

Por fim, Munhoz afirma que a atenção global dada ao conflito ucraniano contrasta com a falta de comoção registrada em conflitos anteriores, protagonizados pelos EUA.
"Os Estados Unidos foram à guerra contra nações soberanas como o Afeganistão e o Iraque. Além disso, envolveram-se em combates e operações para desestabilizar regimes na Síria, na Líbia e em muitos outros lugares. Nessas ocasiões, não vi o tipo de comoção global para condenar aqueles terríveis atos de guerra como nós assistimos agora", destaca Munhoz.
"Parece-me hipocrisia daqueles que sempre lucraram com as suas ações imperialistas e com a guerra e agora se postam como defensores intransigentes da autonomia dos povos", acrescenta o historiador.
Ele frisa ainda que a crise atual "revela um lado sórdido para o qual a mídia tradicional faz vistas grossas: o racismo e a discriminação étnica e religiosa".
"Essa guerra é mostrada com horror nas telas, nas páginas e nas redes pois está a ocorrer na Europa, afeta brancos caucasianos, cristãos. 'Eles são muito parecidos conosco [ocidentais]', lamentam agora os escandalizados analistas que pouco ou nada fizeram para denunciar a matança no Afeganistão, Iraque e em outros lugares."
O professor finaliza citando como exemplo de indignação seletiva por parte da mídia tradicional o conflito em curso no Iêmen desde 2015, com envolvimento de Washington e de seus aliados europeus.

"Observo que esses atores [mídia tradicional] não estão a protestar contra a matança que a Arábia Saudita, aliada e armada pelos EUA, está a fazer no Iêmen. Essa agressão liderada pela Arábia Saudita, por meio de uma coalizão de nove países, iniciou-se em 2015. Sublinho que, de fato, EUA, Reino Unido, França e outros países ocidentais dão suporte à Arábia Saudita."

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