"Pode existir entre dois povos e Estados uma tensão tal, e tamanha soma de elementos hostis, que um motivo de guerra, ainda que mínimo em si mesmo, desencadeará um efeito desproporcionado, uma verdadeira explosão."
CARL VON CLAUSEWITZ, 'DA GUERRA'
CARL VON CLAUSEWITZ, 'DA GUERRA'
Em um memorando vazado recentemente, o general estadunidense Michael Minihan considera que um conflito aberto entre americanos e chineses poderá acontecer até o ano de 2025. Muitos analistas internacionais têm realmente se debruçado sobre essa possibilidade, apontando que um dos motivos para a eclosão de uma guerra entre Estados Unidos e China poderia envolver a questão de Taiwan ou mesmo as reivindicações de Pequim no mar do Sul da China.
Vale lembrar que a Marinha americana regularmente patrulha essa área sob a justificativa de manter a liberdade de navegação. A China, no entanto, sabedora de que a crença ingênua nas justificativas apresentadas pelos Estados Unidos poderia lhe causar problemas futuros, vem construindo instalações militares em sua vizinhança marítima imediata, deixando bem claro que considera seu entorno como uma zona de interesses legítimos de Pequim.
Fato é que: para além da questão envolvendo Taiwan ou mesmo o próprio mar do Sul da China, existe uma condição sistêmica fundamental que serve como pano de fundo para todas essas previsões e expectativas a respeito de uma guerra vindoura entre Estados Unidos e China: trata-se da ameaça que a China representa à hegemonia americana nas relações internacionais.
A China é hoje o principal candidato a ocupar a posição de superpotência no século XXI juntamente com os Estados Unidos. Em vista da ascensão chinesa nas últimas décadas, capitaneada por seu impressivo crescimento econômico, Washington testemunhou o (re)nascimento de uma grande potência em condições de opor-se estrategicamente aos seus desígnios unilaterais no sistema.
Vale lembrar que há pouco mais de duas décadas o ex‑assessor de Segurança Nacional americano, Zbigniew Brzezinski, opinava que um dos cenários mais perigosos para o predomínio estadunidense no plano global seria o surgimento de potências com uma disposição propriamente "anti-hegemônica" e capazes de influenciar outros Estados nessa mesma direção em função de seu capital econômico e político.
Ora, não somente a China ganhou mais espaço em instituições financeiras internacionais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, como o país também é o líder em trocas comerciais globais (15% do total em 2020) e o principal parceiro comercial de mais de 120 Estados espalhados pelo mundo. Não sem razão, a estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos em 2017 já afirmava que a China desafiava o poder, a influência e os interesses americanos no mundo, considerando-a inclusive uma potência revisionista que busca moldar as relações internacionais de acordo com valores contrários aos dos Estados Unidos.
Em verdade, assim como a Rússia, a China também escolheu o caminho da oposição em princípio ao modelo de democracia liberal promovido por Washington. Enquanto isso, adotou como premissa sócio-política fundamental a defesa internacional da "pluralidade de sistemas de valores" em oposição às agendas estadunidenses e ocidentais de pretensões universalistas, que tanto para os russos quanto para os chineses nada mais são do que uma manifestação clara de imperialismo cultural disfarçada de humanismo.
Isso não quer dizer que transformações sociais não venham a ocorrer ou mesmo que já não estejam ocorrendo na China. A questão é que elas ocorrem no tempo chinês, ou seja, no tempo de uma sociedade que enxerga o futuro no longo prazo e não pautada no imediatismo típico dos ciclos eleitorais nos Estados Unidos.
No plano geopolítico, após a queda da União Soviética em 1991 e com o estabelecimento do mundo unipolar dos anos 1990 os formuladores de políticas em Washington deixaram de reconhecer a existência de esferas de influência que não estivessem diretamente sob seu controle. Para a Casa Branca, o mundo inteiro era na verdade a esfera de influência dos Estados Unidos, na qual os demais Estados deveriam jogar em grande parte pelas regras americanas, ou então pagar o preço do isolamento político e econômico ou até mesmo terem seus regimes e governos derrubados pela força.
Contudo, a ascensão chinesa – e em certa medida também o ressurgimento da Rússia durante os anos 2000 – acabou por colocar um fim à unipolaridade indisputada dos americanos no sistema e com ela à ilusão de que outras nações simplesmente assumiriam o lugar designado por Washington numa ordem internacional liderada pelos Estados Unidos.
Dada então a reafirmação da China como uma potência regional e global, logo a administração americana entendeu estar diante de uma nova competição entre grandes potências, que ameaçava os seus interesses geopolíticos em outras partes do mundo, como no caso da Eurásia.
Com efeito, o desenvolvimento da Organização de Cooperação de Xangai nos anos 2000, liderada pelos chineses e que conta com a presença de países importantes como Rússia, Índia, Paquistão e os países da Ásia Central, trata-se de um exemplo da consolidação da Eurásia como polo de poder independente.
Assim como o lançamento do projeto Nova Rota da Seda por Xi Jinping em 2013, que visa escoar de forma mais eficiente a produção chinesa desde o Leste Asiático até os mercados europeus abarcando em seu escopo mais de 50% do PIB mundial e 70% de sua população, também se trata de uma ferramenta importante que transformará a influência econômica chinesa em liderança política no plano global.
Diante, portanto, de uma China que confiantemente conduz sua política externa e que se tornou uma das principais defensoras do conceito de "multipolaridade" no sistema internacional, não é exagero conjecturar que uma guerra esteja realmente nos planos dos Estados Unidos para um futuro próximo, qualquer que seja a razão encontrada para sua conflagração.
Afinal, a soma dos elementos aqui destacados já dá a entender que a imposição hipotética de uma derrota militar à China seria a única forma encontrada pelos Estados Unidos de deter seu crescimento econômico e político e com isto retomar sua posição de predomínio global. Ora, os britânicos já tiveram a sua chance de subjugar a China durante as Guerras do Ópio no século XIX e agora os americanos (os verdadeiros herdeiros geopolíticos dos britânicos) esperam fazer o mesmo no século XXI.