Após participação recorde de militares da ativa em cargos civis durante a gestão Bolsonaro, membros do governo e do Congresso debatem medidas para reduzir o papel das Forças Armadas na política nacional.
A primeira proposta em debate é articulada pelo ministro da Defesa, José Múcio, e sugere enviar para a reserva militares que disputem eleições ou ocupem cargos ministeriais.
De acordo com reportagem da Folha de São Paulo, essa proposta não é mal recebida pelo Alto Comando do Exército, tampouco pelos comandantes da Marinha e da Aeronáutica.
Presidente Luiz Inácio Lula da Silva encontra com novo Comandante do Exército, general Tomás Miguel Ribeiro Paiva, Brasília, 21 de janeiro de 2023
© Foto / Palácio do Planalto / Ricardo Stuckert / CC BY 2.0
Fora da alçada do governo, no entanto, alguns petistas tentam adotar um caminho mais assertivo para delimitar a fronteira entre civis e militares. O deputado Carlos Zarattini (PT-SP) redigiu uma Proposta de Emenda Constitucional para mudar a redação do polêmico artigo 142 da Constituição e extinguir as operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO).
O artigo 142
O texto do artigo 142 é alvo de interpretações distintas, que podem dar margem para que grupos defendam a legalidade da intervenção militar no poder civil.
O artigo versa que "as Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem".
"Esse artigo seria perfeito se terminasse na 'defesa da pátria'", disse o cientista político e professor da UERJ, Theófilo Rodrigues, à Sputnik Brasil. "O problema é que foi incluída nele a parte final que diz 'garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem'".
A menção à "garantia dos poderes constitucionais" é interpretada por juristas ultraconservadores como concedendo às Forças Armadas a supremacia em relação aos demais três Poderes. Essa interpretação alega que, caso um poder esteja vivendo forte crise institucional, as Forças Armadas poderiam intervir no mesmo, para "garantir" a sua funcionalidade.
Arthur Lira (PP-AL, à esquerda), presidente da Câmara dos Deputados, durante a votação de destaques e do segundo turno da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que expande benefícios sociais, em 13 de julho de 2022
© Folhapress / Gabriela Biló
Essa função supostamente outorgada às Forças Armadas lembra a do Poder Moderador, exercido pelo imperador Dom Pedro II no século XIX. Na época, o imperador poderia intervir no funcionamento dos Poderes e mediar eventuais disputas entre eles.
Para Rodrigues, atualmente há consenso entre "grande parte da sociedade civil, da imprensa e dos três Poderes" contra essa interpretação da redação do artigo.
"Mas, para evitar riscos no futuro, o ideal seria a aprovação de uma Emenda Constitucional retirando essa parte final do artigo 142", defendeu o cientista político.
Segundo ele, a redação ambígua do artigo 142 não representaria nenhum risco à sociedade, caso a democracia brasileira estivesse operando normalmente.
Vidro do Palácio do Planalto quebrado após invasão ao local promovida por bolsonaristas radicais. Brasília, 8 de janeiro de 2023
© Foto / Divulgação / Ricardo Stuckert
"O problema é que desde 2016 o Brasil não vive tempos normais", acredita Rodrigues. "A radicalização da extrema direita, com o apoio das Forças Armadas, fez com que esse texto mal redigido do artigo 142 fosse instrumentalizado em favor do fracassado golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023."
Operações de Garantia da Lei e da Ordem
As operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), previstas no artigo 142, devem ser acionadas pelos Poderes em situações de extrema gravidade. Grupos do partido do presidente da República acreditam, no entanto, que a participação das Forças Armadas em GLOs, que são operações de segurança pública, extrapola a função dos fardados brasileiros.
"As Forças Armadas não possuem experiência como polícia. O papel das Forças Armadas deve ser apenas o de proteção das fronteiras, de proteger o país da invasão externa. Por isso não faz sentido as Forças Armadas participarem de GLOs", argumentou Rodrigues.
O cientista político ainda lembra da atuação das Forças Armadas em intervenções como a do Rio de Janeiro de 2018 que tiveram resultados controversos. De acordo com o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESEC) da Universidade Candido Mendes, a operação na capital fluminense gerou 1,5 mil mortes por agentes do Estado.
Polícia Militar realiza operação na comunidade Cidade de Deus, em Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio de Janeiro (RJ), em 10 de julho de 2017
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"O ideal seria que o Brasil tivesse uma Guarda Nacional especializada nesse tipo de intervenção", acredita Rodrigues. "A criação de uma nova Guarda Nacional que seja permanente e que tenha como responsabilidade atuar na defesa dos prédios públicos, das terras indígenas, das Unidades de Conservação e das ocasionais intervenções em estados."
Proposta de criação de uma Guarda Nacional foi entregue ao presidente Lula pelo ministro da Justiça, Flávio Dino, na segunda quinzena de janeiro e está na pauta do Executivo.
Flávio Dino, ministro da Justiça e Segurança Pública (à direita), discursa durante evento com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva no teatro do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). Brasília (DF), 9 de dezembro de 2022
Grupos progressistas ainda argumentam que as Forças Armadas não deveriam trabalhar com doutrinas oriundas da Guerra Fria, que focam na suposta existência de um inimigo interno.
Ademais, o texto atual do artigo permite que qualquer poder requisite a imposição da GLO, o que deve ser modificado pela PEC de proposta pelo deputado Zarattini, que limitará a destinação das Forças Armadas a "assegurar a independência e a soberania do país e a integridade do seu território".
Congresso conservador
A proliferação de propostas para reduzir o papel das Forças Armadas na política e na segurança pública contrasta com a composição conservadora do Congresso Nacional brasileiro.
"Não acredito que nada de muito radical vá ser aprovado pelo Congresso contra as Forças Armadas", opina Rodrigues. "Mas certamente alguma medida, ainda que pequena, na direção de reduzir o papel das Forças Armadas será aprovada."
Os militares têm bom trânsito entre as alas mais à direita do Congresso e farão sua opinião ser tomada em consideração pelos parlamentares, ainda que constitucionalmente este não seja o papel das Forças Armadas.
Senadores conversam no Congresso Nacional, em 10 de janeiro de 2023. São eles, da esquerda para a direita: Renan Calheiros (MDB-AL); Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado; Randolfe Rodrigues (Rede-AP); e Rogério Carvalho (PT-SE)
© Foto / Agência Senado / Edilson Rodrigues
"Quem tem que debater essa questão é o Congresso Nacional. As Forças Armadas podem dar opinião, dar um parecer sobre o tema, mas não cabe a elas decidir", concluiu Rodrigues.
Nos próximos dias, o ministro da Defesa José Múcio deve entregar proposta de redução do papel de militares na política ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, conforme apurou a Folha de São Paulo. O comandante do Exército, Tomás Paiva, se reunirá com o deputado federal Carlos Zarattini (PT-SP) para debater Proposta de Emenda à Constituição para editar a redação do artigo 142 e retirar dos militares o poder de realizar operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO).