Panorama internacional

Origem de todo o mal: como doutrina Bush arruinou 'equilíbrio de poder' Rússia-Ocidente na Europa?

Uma das razões pelas quais o balanço estratégico entre a Rússia e o Ocidente acabou sendo prejudicado na Europa foi justamente a ingerência da política americana no continente durante a era Bush (2001-2009).
Sputnik
George W. Bush, 43º presidente dos Estados Unidos, adotou uma doutrina que mudou para sempre como os Estados Unidos passaram a ser enxergados no mundo. Após os ataques de 11 de setembro de 2001 ao World Trade Center e ao Pentágono, Bush implementou uma revisão abrangente da política externa americana, baseada em um plano altamente agressivo para reformular a ordem mundial.
Ao contrário de outras doutrinas governamentais adotadas pela Casa Branca no passado, como a doutrina Truman nos anos 1940, por exemplo, Bush vai usar o poderio militar estadunidense para contestar abertamente as regras e o Direito Internacional, agindo de forma unilateral para atingir os objetivos hegemônicos de Washington no sistema.
Com efeito, essa nova doutrina da política externa americana procurou redefinir os contornos da segurança global, levando em conta apenas os interesses nacionais dos Estados Unidos, sem sequer se preocupar com as inquietações de seus parceiros europeus e ocidentais.
Refletindo uma nova espécie de "imperialismo ativo" de Washington, o governo Bush procurou, pela via da força, difundir os assim-chamados "valores democráticos" para regiões como o Oriente Médio e a Ásia Central, iniciando então as guerras gêmeas no Afeganistão e no Iraque.
Soldados norte-americanos cobrem o rosto de uma estátua de Saddam Hussein com uma bandeira dos EUA antes de derrubar a estátua no centro de Bagdá no auge da Guerra no Iraque, Iraque, 9 de abril de 2003
Como resultado de sua catastrófica intervenção nesses países, não somente ampliou-se o sentimento antiamericanista no mundo como também começaram a se formar movimentos políticos com o intuito de mitigar os efeitos negativos das ações unilaterais do governo estadunidense.
Na Europa, por sua vez, não demorou muito para que estabilidade estratégica atingida a duras penas entre a Rússia e o Ocidente no curso da Guerra Fria começasse a ruir. Isso porque em 2002 os Estados Unidos de Bush anunciaram sua saída unilateral do Tratado Sobre a Limitação de Sistemas de Mísseis Antibalísticos (assinado em 1972), que proibia a implantação de defesas antimísseis no território dos países europeus.
Não obstante, em 2004 o governo Bush impulsionou a mais ambiciosa expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) até então, absorvendo países como Bulgária, Romênia, Eslováquia, Eslovênia, Estônia, Letônia e Lituânia, e fazendo com que a Aliança Atlântica entrasse finalmente em contato direto com as fronteiras da Rússia.
Ainda sob os auspícios de Bush, Washington procedeu à instalação de defesas antimísseis em países como Polônia (que se uniu à Aliança Atlântica em 1999) e Romênia, alegando que esses equipamentos eram destinados a proteger a Europa do Irã, argumento obviamente falso, dadas as capacidades militares do Irã naquele momento do tempo.
Presidente George W. Bush, à esquerda, encontra-se com o presidente da ex-República Iugoslava da Macedônia, Branko Cervenkovski, ao centro, e o primeiro-ministro Nikola Gruvski, à direita, durante a cúpula da OTAN em Bucareste em 3 de abril de 2008, em uma de suas viagens para expansão da OTAN na Europa
Não por acaso, a liderança em Moscou encarou a presença desses sistemas antimísseis em países próximos como um sério fator desestabilizador, que teriam um impacto significativo na segurança regional e global nos anos futuros.
Além do mais, tais equipamentos eram facilmente convertíveis em aparatos de lançamento ofensivo apontados para a Rússia, motivando autoridades no Kremlin a acreditar que os Estados Unidos estavam, de fato, buscando desfazer a paridade estratégica estabelecida entre Moscou e o Ocidente nas décadas passadas.
Notadamente, no âmbito das relações internacionais predomina o entendimento de que o conflito militar se torna menos provável quando as Grandes Potências entendem que suas capacidades ofensivas se encontram em paridade com as de um potencial agressor.
Por isso mesmo que Vladimir Putin, em seu discurso de 2007 na Conferência de Munique (na Alemanha), considerou que a ampliação da OTAN nos anos anteriores nada tinha a ver com a modernização da aliança, mas sim representava uma provocação aberta contra a Rússia.
À época, o objetivo da administração Bush era duplo: diminuir a capacidade retaliatória da Rússia e fazer com que os países europeus se sentissem ainda mais dependentes da proteção americana no futuro.
Assim, a Casa Branca, de maneira escancarada, começava a remover as bases do equilíbrio de poder na Europa, falhando em exercitar uma política externa mais prudente, que pudesse levar em conta as preocupações de Moscou quanto à sua própria segurança.
A doutrina Bush, portanto, representou um estado de coisas em que os interesses nacionais e geopolíticos americanos deveriam prevalecer sobre quaisquer outros, sejam adversários ou aliados. Resumidamente, referia-se a uma política de promoção de um desequilíbrio estratégico em favor de Washington, que levaria anos depois a uma verdadeira crise de confiança entre Moscou e as lideranças ocidentais, como evidenciado durante os primeiros meses de 2022.
Uma política de equilíbrio de poder adequada, por sua vez, requereria dos Estados Unidos uma abordagem modesta e consciente quanto aos diversos interesses em jogo no continente europeu, evitando assim causar reações destrutivas ou um sentimento de hostilidade entre os países.
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Na qualidade de Estado dominante, os americanos procuraram mascarar suas intenções geopolíticas por meio de promessas de proteção aos seus parceiros ocidentais, sem que estes percebessem que era a própria ingerência de Washington que tornava o continente mais instável.
Como se não bastasse, foi durante o final do período de George W. Bush no poder que a OTAN manifestou abertamente sua intenção de incluir a Ucrânia e a Geórgia ao quadro da organização. A Rússia, desde então, imediatamente expressou seu descontentamento com relação aos planos da aliança de expandir-se ainda mais para perto de suas fronteiras.
Moscou sabia que, se Ucrânia e Geórgia fossem aceitas como membros do bloco militar ocidental, mísseis balísticos e tropas da OTAN seriam posicionados em seus territórios, colocando em risco a integridade territorial da Rússia.
Manifestantes seguram um boneco simbolizando o colapso da Ucrânia se ela se juntar à OTAN enquanto se reúnem na praça central da Independência para protestar contra a visita do presidente dos EUA, George W. Bush, e os esforços da Ucrânia para se juntar à OTAN em Kiev, 31 de março de 2008
Pode-se dizer, portanto, que: foi durante a administração de George W. Bush (2001-2009) que Moscou entendeu as reais intenções da OTAN, a saber, utilizar os países vizinhos à Rússia como "plataformas" para minar sua segurança e sua posição no espaço pós-soviético.
Foi este, aliás, um dos principais motivos geradores da crise que hoje acompanhamos no Leste Europeu. Não fossem as políticas unilaterais dos Estados Unidos no começo dos anos 2000, talvez a Europa não tivesse de lidar com os graves problemas atualmente em curso referentes ao conflito na Ucrânia.
Isso porque as lideranças europeias não conseguiram perceber a tempo que a origem de todo o mal não estava exatamente no continente, mas sim do outro lado do oceano.
As opiniões expressas neste artigo podem não coincidir com as da redação.
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