Panorama internacional

Analista: Brasil está 'anos-luz' à frente da Europa na produção agrícola para parceria com a África

O Brasil tenta recuperar o espaço diplomático perdido no continente africano durante os últimos quatro anos sob gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro, o único mandatário brasileiro das últimas duas décadas que nunca visitou nenhum país da região.
Sputnik
Atual presidente, Luiz Inácio Lula da Silva vem tentando resgatar o prestígio nas relações bilaterais com as nações africanas. Alguns avanços já foram registrados, como os acordos de cooperação selados entre Brasil e Angola, país cujo atual presidente é João Lourenço.
Entre eles figura a cooperação agrícola entre ambas as nações. A ideia, segundo Lula, é ajudar a revolução rural no país com o desenvolvimento da atividade no Vale do Cunene, região no sul de Angola prejudicada por uma intensa seca nos últimos anos.

"O Vale do Cunene é parecido com o Vale do São Francisco, no Brasil: uma região historicamente afetada por secas que se transformou num polo produtor de alimentos", declarou.

O presidente brasileiro também disse que está estudando a retomada do Programa Mais Alimentos, criado em 2008 e voltado à estimulação da agricultura familiar nos países africanos.
Durante a 14ª Conferência de Chefes de Estado da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), em São Tomé e Príncipe, país da África Central, em 27 de agosto, Lula afirmou que o continente tem elementos para se tornar uma potência no setor de cultivo de alimentos.

"A África tem tudo para se tornar uma potência agrícola, com capacidade para alimentar seu povo e o mundo. O Brasil continuará a ser parceiro nessa empreitada. Assim como no passado, uma versão do Mais Alimentos para a África deve ser retomada como mais uma vertente da cooperação Sul-Sul brasileira", apontou.

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As medidas também ganham contornos geopolíticos, já que nações da Europa vêm adotando o chamado protecionismo verde, alvo de constantes críticas do chefe do Executivo do Brasil.
Eduardo Assad, professor do Centro de Estudos do Agronegócio da Fundação Getulio Vargas (FGV Agro) e diretor da consultoria Fauna, diz que esse protecionismo tem um "viés impressionante".

"Se olharmos o que os países europeus fizeram na África, eles não deveriam nem estar falando nada com relação ao protecionismo verde e à produção sustentável. O que foi feito na colonização belga, francesa e inglesa na África foi uma espécie de arrasa-quarteirão", critica. "Agora, de qualquer maneira, não assusta, porque nós estamos alguns anos-luz à frente deles [europeus] em termos de escala. A agricultura ABC [plano setorial para adaptação à mudança do clima e à baixa emissão de carbono] já funciona há dez anos, as condições de fazer um tipo de agricultura como a ABC na África são enormes e nos dão uma diferença, uma referência boa com relação aos países africanos", aponta.

Para contornar a questão, o pesquisador sugere que seja aplicado o princípio de reciprocidade da diplomacia. Ou seja: se houver protecionismo, então não se compra determinado produto. "É preciso começar a falar mais duro com esses países. Nossos diplomatas não podem entrar em uma mesa de negociação com punhos de seda, porque ali só se entra com luva de boxe", avalia.
Ele afirma, porém, que as relações bilaterais com países africanos só vão funcionar de acordo com as demandas de cada um, isto é, o que eles querem e precisam.

"A dieta deles é um pouco diferente da nossa. Aliás, é bem diferente da nossa. Então, a gente precisaria levar para lá, por exemplo, a ideia de cesta básica e começar a trabalhar com a produção de feijão. Já tem o niebê, que é o feijão-de-corda, muita gente come isso no continente inteiro, além de mandioca, de frutas que existem na região. Temos uma tecnologia muito boa na produção desses alimentos, que a gente pode utilizar lá", indica.

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Assad se diz reticente com a exportação da produção de soja, contudo. Isso porque a estrutura fundiária e as condições de produção são diferentes. "É preciso incentivar o consumo de produtos que eles precisam, e nisso aí a produção daqueles produtos da cesta básica [brasileira] é muito boa."
Guilherme Ziebell, professor de relações internacionais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), endossa o colega e lembra que o Brasil "é um país com grande expertise e significativo desenvolvimento tecnológico no que diz respeito ao setor agrícola".
"A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária [Embrapa] é, nesse contexto, um ator central, porquanto é responsável por grande parte das inovações e desenvolvimentos no setor, os quais têm permitido, historicamente, o aprimoramento crescente da produção agrícola brasileira, aumentando tanto sua qualidade quanto sua produtividade (sem necessidade de expansão da fronteira agrícola)."
Nesse sentido, prossegue, as parcerias do Brasil com os países africanos podem contribuir de forma ampla, tanto pela experiência brasileira em termos gerais (sobretudo em regiões áridas, já que o continente africano possui grande diversidade de climas e biomas) quanto pela possibilidade de cooperação no desenvolvimento de produtos específicos (como algodão, cacau e outros) e de ações conjuntas (por exemplo em trabalhos de preservação de solos).
Ambos os pesquisadores concordam, também, que as relações bilaterais entre Brasil e países africanos estão em reconstrução após a sua desestruturação e descaracterização — operadas de forma "voluntária e consciente", como nota Ziebell — principalmente a partir de 2018.

"O Brasil perdeu espaço e prestígio no continente, e parte importante da cooperação com os países africanos foi encerrada (ou muito fragilizada). No contexto atual, a partir do início do governo Lula, há um movimento no sentido de restabelecer esses laços, o qual, todavia, seguramente enfrentará um longo percurso, tanto pelo retrocesso vivido ao longo do período anterior quanto porque, ao longo desse período, outros atores internacionais incrementaram seus laços com os atores africanos, aumentando significativamente a competição que será enfrentada pelo Brasil nessa busca de retomar sua presença no continente", finaliza o professor da UFRGS.

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