Enquanto os Estados Unidos recordam as vítimas dos mortais ataques terroristas de 11 de setembro que abalaram o país há 22 anos, vale a pena notar que Washington fez uma "escolha deliberada" de "ajudar a criar" os próprios extremistas que os planejaram, disse o professor de história da Universidade Americana, Peter Kuznick, à Sputnik.
"Sabíamos exatamente quem eram essas pessoas e como eram suas organizações", disse o coautor de "História não contada dos Estados Unidos".
"Os EUA ajudaram a treinar, recrutar, armar e educar os extremistas islâmicos que depois atacariam os Estados Unidos no 11 de setembro", disse Peter Kuznick.
Os EUA acreditavam que os ataques de 11 de setembro foram planejados pelo líder da Al-Qaeda, Osama bin Laden, que na altura se encontrava no Afeganistão sob a proteção do Talibã (organização sob sanções da ONU por atividade terrorista), que estava no poder desde 1996. É um fato bem documentado que Washington financiou Maktab al-Khidamat, o precursor da Al-Qaeda, que foi fundada, entre outros, por Osama bin Laden e Ayman al-Zawahiri.
"No início de 1979, os EUA já estavam trabalhando com extremistas islâmicos [...]. Na verdade, de acordo com Zbigniew Brzezinski, conselheiro de segurança nacional do então presidente dos EUA, Jimmy Carter, em 3 de julho de 1979, o 39º presidente dos EUA assinou a primeira diretiva para ajuda secreta aos rebeldes", disse Peter Kuznick.
Os insurgentes que os EUA começaram a financiar se opunham ao governo "modernista" apoiado pela União Soviética no Afeganistão, que estava "apoiando a industrialização" e "educando as mulheres", enfatizou o professor de história. Os extremistas islâmicos apoiados pelos EUA trabalhavam principalmente no Paquistão, com o governo de Muhammad Zia-ul-Haq, e "entrariam nas escolas, aliados dos EUA, e não apenas ameaçariam e matariam professores, mas também esfolariam pessoas vivas", disse ele.
"Era isso que os EUA apoiavam lá. Foram as pessoas que mais se opuseram à educação das mulheres. Tudo começou em menor escala com Brzezinski. Mas a administração de Ronald Reagan aumentou isso", acrescentou.
Uma coleção de documentos desclassificados da Casa Branca e tornados públicos em 2019 mostrou que, em 1980, a CIA do então presidente Carter esbanjou perto de US$ 100 milhões (cerca de R$ 493,4 milhões) em armas enviadas aos rebeldes em questão, com a administração de Ronald Reagan aumentando a aposta para US$ 700 milhões (aproximadamente R$ 3,4 bilhões) anuais. De acordo com os mesmos documentos desclassificados, partilhados pelos meios de comunicação dos EUA em 2019, Brzezinski recebeu um aviso de um funcionário do Conselho de Segurança Nacional, Thomas Thornton, que disse que os extremistas afegãos que estavam armando eram "um bando muito feio. Estremeço ao pensar nos problemas de direitos humanos que enfrentaríamos se eles chegassem ao poder". A CIA também estava de olho em Gulbuddin Hekmatyar, que receberia mais de US$ 1 bilhão (cerca de R$ 4,9 bilhões) em armamentos dos EUA durante a próxima década.
"A principal pessoa para quem os EUA enviaram ajuda era [Gulbuddin] Hekmatyar, de acordo com James Sparks, que é o diretor de estudos de terrorismo na Academia Militar West Point dos EUA. De acordo com ele, Gulbuddin Hekmatyar era "conhecido por patrulhar os bazares de Cabul com frascos de ácido, que ele jogava no rosto de qualquer mulher que ousasse andar ao ar livre sem uma burca completa cobrindo o rosto", disse Peter Kuznick.
"Portanto, os EUA estavam fornecendo ajuda, fornecendo armas e fornecendo treino nestes campos no Paquistão, e depois eles [os extremistas] seriam enviados para o Afeganistão. Então isto se tornou um íman para os jihadistas de todo o mundo que queriam lutar contra o secularismo do governo no Afeganistão. Entre aqueles que foram para o Paquistão nestas circunstâncias estavam Osama bin Laden e Ayman al-Zawahiri, os futuros líderes da Al Qaeda", lembrou o historiador. Ayman al-Zawahiri foi posteriormente morto por um ataque de drone dos EUA em Cabul, Afeganistão, em 2022.
O especialista citou Cheryl Benard, esposa de Zalmay Khalilzad, embaixador dos EUA no Afeganistão, dizendo que os norte-americanos tinham feito uma "escolha deliberada", na altura, de "lançar os piores malucos" contra o governo secular no Afeganistão, independentemente do "dano colateral."
"Sabíamos exatamente quem eram essas pessoas e como eram suas organizações. Não nos importamos se permitimos que matassem todos os líderes moderados."
Em abril de 1992, grupos rebeldes invadiram a capital sitiada de Cabul, derrubando o então presidente Mohammad Najibullah, com a eclosão da guerra civil e o Talibã conseguindo assumir o poder. Osama bin Laden regressou com as forças da Al-Qaeda ao Afeganistão em 1996, disse Kuznick.
"Agora, essas pessoas foram treinadas e educadas com livros administrados pela Universidade de Nebraska no Centro de Estudos do Afeganistão de Omaha, financiado pelo governo dos EUA, que ensinou os jovens afegãos a ler, com fotos e livros, aprender a contar e fazer matemática pelo número de soldados mortos que mataram, uma série de rifles Kalashnikov que foram fornecidos [...]. E então esses foram os extremistas que os Estados Unidos ajudaram a criar", acrescentou.
Após os ataques de 11 de setembro, a Al-Qaeda, baseada no Afeganistão, controlada na altura pelos talibãs e liderada por Osama bin Laden, assumiu a responsabilidade. Chamou os ataques descarados de uma vingança pelo apoio dos EUA a Israel e pela intromissão nos assuntos dos países muçulmanos. Quando Cabul se recusou a extraditar bin Laden, os EUA e os seus aliados invadiram o Afeganistão em novembro de 2001, encontrando-se então atolados em uma longa insurreição contra os talibãs. Os EUA capturaram ou assassinaram as principais pessoas consideradas responsáveis pela orquestração dos ataques de 11 de setembro, como foi o caso do assassinato de bin Laden em 2 de maio de 2011.
A guerra dos EUA no Afeganistão durou quase 20 anos e custou a vida a mais de 65.000 membros das forças de segurança afegãs, a mais de 3.500 soldados da coligação, a cerca de 4.000 mercenários ocidentais, entre 67.000 e 72.000 combatentes talibãs e a mais de 38.000 civis. Depois de os talibãs terem tomado o poder no Afeganistão, em agosto de 2021, desencadearam o colapso do governo apoiado pelos EUA, liderado pelo presidente Ashraf Ghani, e aceleraram a retirada das tropas dos Estados Unidos. Em 31 de agosto de 2021, as forças dos EUA concluíram a sua retirada do país, encerrando a presença militar de 20 anos no país.
Olhando para trás, para a forma como os EUA apoiavam os fanáticos islâmicos mais extremistas no Afeganistão, e como isso se voltou contra eles, invariavelmente traçamos paralelos com a atual conflagração na Ucrânia.
Com amplas provas de neonazismo que permeiam o regime de Kiev e os militares ucranianos, nos perguntamos se os EUA estão "trilhando o mesmo caminho", ao canalizarem apoio militar no valor de bilhões para alimentar a guerra por procuração liderada pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) contra a Rússia. No mês passado, documentos da Embaixada da Dinamarca em Kiev vistos pela Sputnik revelaram que instrutores militares da OTAN treinaram soldados ucranianos em uma base do Batalhão Azov nacionalista (organização terrorista proibida na Rússia), apesar da exclusão deste último do financiamento militar dos EUA devido ao seu radicalismo. Em agosto de 2022, o Supremo Tribunal russo designou Azov como organização terrorista. O gabinete do procurador-geral russo disse que os militantes de Azov usam meios e métodos de guerra proibidos e são cúmplices na tortura de civis e no assassinato de crianças.
Washington prometeu apoiar o governo da Ucrânia, que apresenta abertamente batalhões neonazistas, e assassinou jornalistas russos, até o último ucraniano.
"A política dos EUA de emprestar armas e fazer tudo o que pode para prolongar os combates lá [na Ucrânia], não é uma política sábia", e algumas das repercussões podem ter um efeito negativo "semelhante à experiência dos EUA com os Mujahideen afegãos", concluiu Peter Kuznick.