Na terça-feira (19), a Ucrânia entrou com processo judicial contra Polônia, Hungria e Eslováquia na Organização Mundial do Comércio (OMC) para demandar a retirada de embargo imposto contra a sua exportação de grãos. A decisão ucraniana de mover ação contra aliados importantes, como a Polônia, pode colocar em risco a manutenção do apoio miliar a Kiev.
O embargo foi imposto pelos países do Leste Europeu como uma resposta ao grande volume de importações de alimentos baratos e livres de tarifas provenientes da Ucrânia, que estariam prejudicando os seus agricultores.
A disputa comercial escalou rapidamente para uma crise política, após o presidente ucraniano Vladimir Zelensky alegar que o apoio de seus aliados do Leste não passava de um "teatro político", durante seu discurso na Assembleia Geral da ONU. Varsóvia reagiu às declarações, denunciando-as como "injustificadas em relação à Polônia, que apoiou a Ucrânia desde os primeiros dias da guerra".
Após o incidente, o primeiro-ministro da Polônia, Mateusz Morawiecki, declarou que seu país não providenciará mais armamentos para o esforço de guerra ucraniano.
"Não vamos mais transferir armamentos para a Ucrânia, precisamos armar a Polônia com armas mais modernas", disse Morawiecki em entrevista ao canal local Polstat concedida na terça-feira (19).
A Polônia tem sido um dos principais aliados de Kiev, garantindo a operação do hub militar de Rzeszow, tanques e caças MiG-29.
Ucrânia europeia?
A disputa entre países-membros da União Europeia e Ucrânia deve dificultar ainda mais o já contencioso processo de adesão de Kiev ao bloco, acredita o professor de economia da UFAL, José Menezes Gomes.
"A entrada da Ucrânia na União Europeia, que já era difícil antes do conflito, agora fica extremamente comprometida", disse Menezes Gomes. "A relação entre a dívida e o PIB ucraniano era muito grande, e as exigências europeias para a entrada são atualmente muito duras, incluindo a total adesão a pacotes de austeridade."
A presidente da Comissão Europeia da União Europeia fala durante coletiva de imprensa ao lado do presidente ucraniano, Vlaimir Zelensky, em Kiev, na Ucrânia, em 8 de abril de 2022
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A Ucrânia é um dos maiores produtores de grãos do mundo e possui grande potencial agrícola. Por isso, a candidatura ucraniana contará com a oposição do poderoso lobby agrícola europeu e de seus vizinhos do Leste.
"Esses países [Ucrânia, Polônia, Hungria e Eslováquia] ocupam a mesma posição subalterna na divisão internacional do trabalho europeia, e por isso são concorrentes entre si", considerou Menezes Gomes. "Mas a Ucrânia tem a vantagem de ser um país de grande extensão territorial, com terras extremamente férteis, ainda não totalmente ocupadas pelo capital ocidental."
O especialista em União Europeia e professor de Relações Internacionais da ESPM-SP, Demetrius Pereira, nota o protecionismo agrícola europeu, que protege o mercado do bloco contra produtos competitivos advindos não só de países como Ucrânia, mas também do Brasil.
Trabalhadores conduzem tratores dentro de campo de soja em Mato Grosso, em 27 de março de 2022
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"A Europa mantém uma Política Agrícola Comum desde os anos 60, criando um sistema de subsídios para ajudar os países agrícolas a competirem dentro do mercado europeu e evitar a entrada de produtos baratos que possam ameaçar a indústria agrícola europeia", explicou Pereira à Sputnik Brasil.
O apoio institucional fortaleceu os agricultores europeus, que são uma base eleitoral coesa e importante para a manutenção de governos do Velho Continente. Ao elevar o tom com os ucranianos, o primeiro-ministro polonês também está de olho nas eleições gerais, que devem ocorrer nas próximas semanas.
De acordo com o jornal The New York Times, os agricultores de países como Polônia, Bulgária e Eslováquia demonstram insatisfação com os baixos preços atribuídos à sua produção, que atribuem à infiltração dos cereais ucranianos nos mercados locais.
Velha ordem
O caso evidencia a fragilidade de duas das principais instituições internacionais do início do século XXI: a União Europeia e a Organização Mundial do Comércio (OMC). Comemoradas como exemplos do sucesso do processo de globalização sob a égide do Ocidente e da expansão do neoliberalismo, ambas veem sua influência diminuir em meio à atual transição geopolítica.
"A OMC não segue relevante", disse a analista geopolítica no Instituto Mundo Multipolar, Mariana Schlickmann, à Sputnik Brasil. "Ela foi criada em um momento de consolidação da unipolaridade, e de máxima expansão da política de globalização econômica [...] e hoje esse não é mais o cenário."
Um dos principais golpes contra a instituição foi dado pelo próprio governo dos EUA, que bloqueou o funcionamento do Mecanismo de Solução de Controvérsias da instituição. A decisão foi tomada quando a liberalização comercial promovida pela OMC deixou de atender os interesses em Washington, em meio à sua disputa econômica com a China.
Pessoa caminha em frente à entrada do prédio da Organização Mundial do Comércio (OMC) em Genebra, Suíça, sexta-feira, 22 de junho de 2007
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"Na nova configuração mundial, com a emergência de novos atores e perda de relevância do dólar, outros agrupamentos ganham peso e travam relações a partir de novas bases, como BRICS, ASEAN [Associação de Nações do Sudeste Asiático], OCX [Organização de Cooperação de Xangai]", explicou Schlickmann.
No caso da União Europeia, o embargo aos grãos ucranianos por parte de Polônia, Hungria e Eslováquia evidencia forte divisão interna no bloco. Por ordem de Bruxelas, os países-membros deveriam ter retirado embargos à produção ucraniana no dia 15 de setembro, decisão não acatada por esses três países do Leste.
No entanto, a decisão ucraniana de processar Polônia, Hungria e Eslováquia na OMC poderá forçar Bruxelas a se voltar contra Kiev e defender seus países-membros, reportou o Financial Times.
Para o professor de economia da UFAL, José Menezes Gomes, e imbróglio evidencia a incapacidade da União Europeia de cumprir o que prometeu aos países do Leste durante seu processo de ascensão ao bloco.
"A União Europeia prometeu estabilidade da moeda, políticas sociais e crescimento, mas não cumpriu nada disso", disse Menezes Gomes. "O que ela fez nesses países do Leste foi simplesmente liquidar todo tipo de indústria local, decompor os Estados nacionais e sua capacidade de fazer política econômica, assegurando somente a expansão econômica da Alemanha."
Estudos conduzidos pelo professor apontam que a expansão da União Europeia favorece sobretudo interesses do capital financeiro sediados na França e na Alemanha. Logo, países candidatos deveriam pensar duas vezes antes de lutar pela tão almejada adesão ao bloco.
"Os países que querem entrar podem achar que vão realizar um sonho, mas o que sobrou do projeto europeu é um pesadelo: não há mais Estado de bem-estar social e impera o neoliberalismo. O bloco se reduz a um prêmio de consolação para a Alemanha coadunar com o imperialismo norte-americano", concluiu o professor.