Nova lei de imigração faz Europa pressionar Portugal; especialista vê 'desunião'
15:10, 12 de outubro 2023
País com um dos ritmos mais acelerados de envelhecimento populacional, Portugal já concentra 24% dos habitantes na faixa acima dos 65 anos. Além de impactar no crescimento econômico, a situação afeta a força de trabalho. Na contramão da Europa, o governo tem adotado políticas migratórias para combater o problema, como "residência automática".
SputnikDesde março, está em vigor no país um modelo para imigrantes da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) —
além do Brasil e de Portugal, fazem parte do grupo Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, Timor-Leste e São Tomé e Príncipe.
A lei concede autorização de residência de um ano para pessoas que já vivem no país e não estavam regularizadas, o que permite trabalhar, alugar imóveis e se inscrever em cursos, tudo de forma legal. Antes, era necessário passar por um processo que levava até dois anos.
De acordo com o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), mais de 154 mil cidadãos da CPLP já apresentaram o pedido de certificado para residência, com 140 mil já concedidos. A extensa maioria é de brasileiros (74,5%), seguidos por imigrantes de Angola (9,6%), São Tomé e Príncipe (6,4%) e Cabo Verde (4,4%). Porém a política não tem agradado à União Europeia, da qual Portugal faz parte, e o bloco já começa a pressionar o país.
A situação inclusive levou a um processo interno que questiona o governo português sobre a entrada de pessoas com visto de residência da CPLP em outros países do bloco. Para a Comissão Europeia, há uma violação ao Acordo de Schengen, que estabelece um modelo "uniforme de título de residência" para pessoas de outras localidades — o tratado tem a adesão de 27 países e criou uma zona de livre circulação entre Portugal e Finlândia. O governo português foi notificado e tem dois meses para apresentar seu posicionamento.
4 de setembro 2023, 15:44
Especialista em história contemporânea, a professora emérita do programa de pós-graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Lená Medeiros de Menezes afirma à Sputnik Brasil que o acordo se choca com o objetivo de Portugal de pensar um país que envolva as demais nacionalidades de língua portuguesa.
"Isso dá uma determinada vitalidade em termos populacionais. É uma política que já se desenvolve há tempos e que, de alguma maneira, entra em conflito com essa tendência de fechamento dos demais países da União Europeia", afirma.
A professora emérita também lembra que há um
crescimento da extrema-direita na Europa, que tem o combate à imigração como uma de suas principais bandeiras.
"Vai depender muito do partido que está na condução deste ou daquele país para ter uma determinada atitude mais xenófoba ou menos xenófoba. Obviamente isso vai afetar a questão do Parlamento Europeu e qual é o peso que cada agremiação política tem lá dentro", acrescenta.
Não há irregularidade
O SEF discorda de qualquer irregularidade na autorização de residência que, segundo o órgão português, não confere o direito de livre circulação nos países do Espaço Schengen. O serviço ainda lembrou que, no caso brasileiro, há inclusive regulamentação que desobriga a exigência de visto para turismo, com permanência que não pode ultrapassar 90 dias.
"Aos titulares de Autorização de Residência CPLP são reconhecidos em território nacional os mesmos direitos, liberdades e garantias que aos cidadãos nacionais e o gozo de igualdade de tratamento relativamente aos direitos econômicos, sociais e culturais, em particular no que diz respeito ao acesso ao ensino, ao mercado de trabalho e a cuidados de saúde", defende o SEF.
'Não é mais uma união de iguais'
A disputa entre Portugal e a Comissão Europeia revela "o esfacelamento do grupo e a perda de força dos acordos mais antigos". É o que resume Lená Menezes, que acrescenta que o bloco não é mais "uma união de iguais". Conforme a especialista, as políticas atuais têm inclusive mirado no próprio turismo, com a tentativa de impor limites. Elas também apontam para uma fragilidade da União Europeia no jogo político internacional, cada vez mais suscetível às vontades dos Estados Unidos em contextos como o conflito da Ucrânia e a guerra em Israel.
"Portugal diz que não pretende dar livre circulação aos demais países para quem está em seu território, mas dar facilidade de entrada. Vamos ver como as coisas se desenrolam, até que ponto Portugal vai se amedrontar. Eu acredito que não, à medida que diz que não faz nada ilegal, o que reforça a questão da prevalência do Estado-nação", conclui.
O historiador e professor da Universidade Estadual do Paraná (Unespar) Marcelo Carreiro explica à Sputnik que o Acordo de Schengen busca definir uma única regra de acolhimento em toda a União Europeia.
"É isso que Portugal estaria quebrando unilateralmente, mas ele não está sozinho. Polônia, Hungria e República Tcheca também descumprem, mas se recusando a receber imigrantes pelos acordos. A questão real é que o país cria um precedente para imigração automática facilitada para as ex-colônias, em um contexto difícil de controle de
entrada de imigrantes pelo Mediterrâneo", argumenta.
De acordo com Carreiro, o isolamento português cria um tipo "subeuropeu" de residência.
"É bom lembrar que, evidentemente, o Brasil tem a contrapartida de também receber residentes da CPLP. Só que aqui não há conflito com o Mercosul [pelo Acordo de Residência do Mercosul]".
Questão não é voltada somente aos brasileiros
A professora emérita da UERJ, Lená Medeiros de Menezes, lembra ainda que a reação europeia à lei portuguesa não diz respeito apenas à população dos países de língua portuguesa no continente.
"Isso é uma reação geral contra esse outro que vem da América Latina, da África, alguns da Ásia. Existe essa visão, vamos colocar entre aspas, de 'bárbaros que vêm dos países pobres e considerados mais perigosos'. E sanções internas já acontecem dentro da União Europeia, como quando houve problema na circulação de trens entre França e Itália [quando 7 mil refugiados chegaram em menos de 48 horas na pequena ilha italiana de Lampedusa]", explica.
Além disso, ela frisa que há um discurso de que os imigrantes do Sul Global ameaçam direitos adquiridos ao longo de séculos na Europa. "E é óbvio que à medida que Portugal se antecipa a determinadas restrições, tentando salvaguardar o que ainda existe com relação à comunidade de língua portuguesa, vai gerar essa reação [europeia] de arguir formalmente Portugal."
Em entrevista à
Sputnik Brasil, a professora de direito internacional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Amina Welten Guerra traz outros exemplos desse
confronto dentro do bloco europeu por conta das políticas migratórias:
um dos motivos que culminaram na saída do Reino Unido da União Europeia foi justamente a retomada do controle das fronteiras por parte do Estado.
"Existem dinâmicas peculiares a cada país que, de um modo ou de outro, se revelam mais exitosas quando passam por um processo de regulamentação, e não de proibição. O próprio Reino Unido não conseguiu uma diminuição da imigração nem mesmo saindo da União Europeia. Basta pensarmos no volume de estudantes estrangeiros que vão para o país, ou mesmo na importância econômica dos trabalhadores estrangeiros que tiram seus vistos de trabalho", resume.
Relatos de xenofobia
Em setembro de 2021, uma estudante brasileira de 29 anos, que pediu à reportagem da Sputnik para não ser identificada, conseguiu uma bolsa de estudos no Porto, a segunda maior cidade de Portugal. Desde a saída do Brasil, ela já admitia que ia vivenciar a xenofobia no dia a dia. "Particularmente, eu vivi poucos casos, até porque a cidade é turística, muito mais amigável com os estrangeiros. Mas uma senhora já disse para mim que 'esses brasileiros precisam voltar para a terra deles', episódios assim", revela.
E, segundo ela,
a situação é mais dramática em cidades do interior do país, onde já teve amigos
agredidos por serem simplesmente latino-americanos, africanos ou do Oriente Médio. "E são muitos relatos, porque a comunidade brasileira aqui é enorme, já somos mais de 10% da população de Portugal. Um evento muito marcante para mim foi em junho, quando o embaixador do Brasil em Lisboa recebeu um e-mail com ameaças terroristas a brasileiros e outros estrangeiros no país. Foi uma ameaça grave, dizendo que o governo tinha alguns dias para tirar todos os imigrantes daqui", finaliza.