Israel, que já começou a retaliar as forças do Hamas na Faixa de Gaza, intenta neutralizar o grupo em definitivo, evitando futuros lançamentos de foguetes e tentativas de infiltração em seu território, ao mesmo tempo em que busca recuperar os reféns israelenses capturados durante o dia 7.
Seja como for, as operações terrestres de Israel na Faixa de Gaza não prometem ser fáceis, visto que a região é densamente populada e repleta de túneis e armadilhas urbanas que certamente causarão significativas perdas ao Exército de Netanyahu, assim como entre os civis palestinos.
Aliás, as hostilidades tendem a se espalhar inclusive para outras regiões vizinhas, como a Cisjordânia e o Líbano. No mais, tanto a força como a sofisticação do ataque surpresa do Hamas a Israel sugere que outra potência regional poderia estar envolvida nos acontecimentos do dia 7, a saber, o Irã.
Apesar de não estar claro até que ponto Teerã esteve ou não comprometida no planejamento e preparação do Hamas em relação às agressões cometidas recentemente, é sabido que as autoridades iranianas possuem grande animosidade para com Israel. Para além disso, existem outros fatores políticos em curso a preocupar os líderes do Irã em tempos recentes.
Afinal, nos últimos meses, têm se ouvido rumores em torno de uma iniciativa americana para intermediar um acordo de normalização entre Israel e a Arábia Saudita, o que colocaria o Irã em uma situação um tanto complicada do ponto de vista geopolítico regional. Em 1947, compete lembrar, a Arábia Saudita votou contra o plano de partição das Nações Unidas para a Palestina e até hoje não reconhece a soberania e legitimidade do Estado de Israel.
Um acordo, portanto, entre sauditas e israelenses intermediado pelos americanos reconfiguraria totalmente a arquitetura de segurança no Oriente Médio. A esse respeito, o próprio príncipe herdeiro saudita, Mohammed bin Salman, mencionou recentemente que tal acordo seria um marco histórico a par até mesmo com o final da Guerra Fria.
Ora, para os iranianos, assim como para o Hamas, as perspectivas de uma paz diplomática entre a Arábia Saudita e Israel complicaria e muito sua oposição comum ao poderio israelense no Oriente Médio e à presença americana na região.
Para além disso, expandir laços com a Arábia Saudita, ainda que sob os auspícios de Washington, promoveria o objetivo estratégico de Israel de tentar garantir sua plena aceitação e reconhecimento por parte do mundo árabe.
Ao mesmo tempo, a possibilidade de uma normalização nas relações entre sauditas e israelenses faria com que os Estados Unidos avançassem propostas no sentido de formar uma aliança de defesa tripartite contra o Irã, uma espécie de "OTAN do Oriente Médio".
Com isto, Israel e Arabia Saudita apoiariam a maior presença de Washington na região, dando aos americanos carta branca para intervir nos assuntos domésticos de outros Estados vizinhos, sobretudo dos países árabes com abundância de recursos naturais.
Tal jogada por parte dos Estados Unidos reflete, aliás, certos aspectos da própria geopolítica britânica de meados do século XX. Afinal, vale lembrar que, em 1955, legisladores do Reino Unido ajudaram a estabelecer a Organização do Tratado Central (conhecido como Pacto de Bagdá), que se tratava de uma aliança militar com participação de Irã, Iraque, Paquistão e Turquia e que tinha como intuito contrapor-se à influência regional da União Soviética.
Contudo, golpes militares em alguns de seus membros, revoluções domésticas (como a do Irã em 1979) e divisões internas prejudicaram a continuidade do pacto, que veio a dissolver-se no ano de 1979. Na ocasião, a dinâmica instável do Oriente Médio acabou por minar os planos anglo-saxões para a contenção de um inimigo geopolítico declarado. À época esse inimigo era a União Soviética.
Hoje, esse inimigo é representado pelo Irã, que, por sua vez, mantém boas relações com outros dois atores incômodos ao Ocidente, justamente Rússia e China. Atualmente, para que os planos americanos de contenção ao Irã deem certo, é necessário que os principais países árabes normalizem suas relações com Israel.
Novamente, no entanto, não estamos falando de uma tarefa fácil. Afinal, de acordo com os resultados de uma pesquisa realizada entre 2021 e 2022 pelo Barômetro Árabe, grupo de pesquisa sediado na Universidade de Princeton (Estados Unidos), a maioria dos cidadãos do chamado mundo árabe rejeita a normalização de relações com Israel. Em nove dos 11 países pesquisados, menos de um em cada cinco respondentes disse apoiar algum tipo de acordo com Tel Aviv.
Essa situação é ainda mais desalentadora na Arabia Saudita, aliás, onde apenas 2% dos jovens dizem apoiar a normalização de relações com Israel. Em vista desse cenário, apesar de promissores desenvolvimentos recentes, atingir o estabelecimento de um acordo oficial entre Riad e Tel Aviv, patrocinado pelos americanos, parece ainda estar um tanto distante, em vista da reação israelense aos ataques do Hamas.
Não obstante, também fica comprometida a criação de uma OTAN no Oriente Médio sob o guarda-chuva de Washington, dado que uma resposta desproporcional por parte de Israel na Faixa de Gaza alienará de vez a Arabia Saudita, demovendo-a de seguir em frente com seu propósito de aproximar-se de Tel Aviv.
Ora, ainda que possua interesses estratégicos comuns com Israel em relação ao Irã, os sauditas, como um povo árabe e de maioria muçulmana, se veriam em uma condição complicada caso endossassem uma normalização de relações com Tel Aviv em um momento como esse, em que diversas baixas civis já têm sido reportadas na Faixa de Gaza.
De certo modo, portanto, e ainda que inadvertidamente, os ataques do Hamas a Israel do último dia 7 podem ter colocado em xeque os embriões do projeto americano de estabelecer uma mini-OTAN no Oriente Médio contra o Irã. Ora, tivesse esse plano sido bem-sucedido, estaríamos diante de mais um elemento de desestabilização em uma região que já conta por si só com um enorme número de problemas historicamente intratáveis.
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