Análise: eleitores argentinos reeditam insatisfação com a elite política vista no Brasil e nos EUA
10:00, 20 de outubro 2023
Analistas ouvidos pela Sputnik Brasil apontam que as eleições argentinas vão muito além da polarização entre direita e esquerda e refletem a exaustão da população com a política tradicional, que não foi capaz de retirar o país de mais de 20 anos de crise econômica.
SputnikPrevistas para o próximo domingo (22), as eleições presidenciais da Argentina foram marcadas por visões e posicionamentos profundamente divergentes dos dois principais candidatos do pleito, o economista Sergio Massa, atual ministro da Economia do governo do presidente Alberto Fernández, e o economista ultraliberal Javier Milei.
Segundo a mais recente
pesquisa divulgada na semana passada, pela consultora Atlas Intel,
Massa aparece na frente, com 30,9% das intenções de voto, seguido por Milei (26,5%) e a conservadora Patricia Bullrich (24,4%). Os números apontam para um possível segundo turno
entre Massa e Milei.
A ascensão de Milei, que chegou a ser classificado como um "Jair Bolsonaro argentino",
traz apreensão ao governo brasileiro. Isso porque o candidato defende a dolarização da Argentina, a ruptura com a China e o Brasil e países do BRICS. Em entrevista recente, o ministro da Economia, Fernando Haddad, admitiu que o
governo brasileiro está preocupado com a possível vitória de Milei.
"É natural que eu esteja [preocupado]. Uma pessoa que tem como uma bandeira romper com o Brasil, uma relação construída ao longo de séculos, preocupa. É natural isso. Preocuparia qualquer um", disse Haddad.
Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas lançaram dúvidas sobre a capacidade de Milei de colocar em prática as medidas que defende para a retomada econômica da Argentina. Eles argumentam que a ascensão de Milei reflete uma insatisfação popular com as duas décadas de crise econômica no país e a incapacidade dos governos recentes de mudar a situação.
Em outras palavras, a escalada de Milei no pleito reflete um voto de protesto e desejo por mudança.
27 de janeiro 2023, 14:34
Eles afirmam que é possível traçar um paralelo com o que aconteceu no Brasil, com a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, e nos EUA, com a eleição de Donald Trump, em 2016.
Para Paulo Velasco, cientista político e professor de relações internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), o crescimento de Milei nas pesquisas reflete um desejo por ruptura com as figuras políticas tradicionais.
"Dá para fazer um paralelo, sim, com o que já vimos em outros países em contextos recentes, na Europa, nos EUA, no Brasil. A própria crise de representatividade política e o fato de os argentinos não se sentirem efetivamente bem representados pelos grupos políticos tradicionais, acaba, justamente, facilitando e abrindo espaço para o surgimento de personagens como Javier Milei, que se apresentam como uma ruptura, como algo novo, diferente, muito críticos à tradição política no país, críticos ao próprio sistema", explica Velasco.
Ele acrescenta que a população argentina vive um cenário de exaustão em relação à política do país nas últimas décadas, que leva à busca por soluções mágicas para problemas complexos.
"Um país em crise aguda há mais de 20 anos, tirando momentos de certo alívio. Eles acabam se deixando seduzir por uma retórica como a do Milei, que é uma retórica populista, onde se propõe soluções fáceis e simplistas para situações muito complexas. Isso acaba seduzindo o povo desavisado em questões como a extinção do banco central argentino, ou a dolorização da economia, como se isso fosse mágica para, da noite para o dia, tirar o país de uma crise tão estrutural e tão profunda."
Ariel Goldstein, doutor em ciências sociais da Universidade de Buenos Aires (UBA), e autor do livro "La Reconquista Autoritaria", concorda com o paralelo de insatisfação com a elite política, mas acrescenta que há outros fatores, como a hiperinflação.
"É uma situação semelhante à dos EUA e do Brasil, mas tem uma diferença, que é o processo de hiperinflação que está acontecendo na Argentina. Quando se compara o que aconteceu no Brasil, Bolsonaro tinha um programa muito focado na questão do anticomunismo e da segurança. Aqui na Argentina, Milei e a extrema-direita estão colocando o programa muito focado na questão do recorte do gasto público contra o Estado. Esse programa mais neoliberal no centro do programa econômico é uma questão que tem a ver com esse processo de hiperinflação que está acontecendo na economia argentina. Então, tem semelhança, mas diferenças também", explica Goldstein.
11 de outubro 2023, 15:57
Outra diferença apontada pelos especialistas tem a ver com a polarização. Segundo eles, diferentemente do que ocorreu no Brasil e nos EUA, a polarização não está tão voltada à direita ou esquerda, como no Brasil, mas sim a uma disputa contra ou a favor de grupos políticos tradicionais, independentemente do espectro político.
"Os que apostam no Milei efetivamente querem uma ruptura, um abandono radical de tudo o que foi feito no país nas últimas décadas, não importa se pelo [Mauricio] Macri, pela Cristina Kirchner ou pelo Alberto Fernández. É uma ruptura", explica Velasco.
Velasco afirma que a disputa entre eleitores "é uma disputa de modelos, não uma polarização simplesmente ideológica". Ele destaca que a sociedade civil argentina é "mais aguerrida e atuante do que a brasileira, e tem agendas mais avançadas em questões de direitos das mulheres e direitos humanos".
"Não há aquela divisão tão clara entre conservadores e não conservadores. O Milei é algo diferente, porque ele tem uma agenda mais conservadora em alguns pontos, mas é libertário em outros. Defende a venda de órgãos, já chegou a falar da venda de crianças, coisas bem bizarras que assustam os conservadores. Ele não é ligado à agenda evangélica, por exemplo. Então, não é a aquela polarização que vimos no Brasil ou que se vê em outras partes do mundo, entre uma agenda conservadora de costumes e uma agenda mais progressista."
Ariel concorda que há um processo de polarização, mas destaca que a diferença é que no Brasil "a direita tradicional entrou em crise com o surgimento da extrema-direita", enquanto na Argentina a direita tradicional ainda tem fôlego entre eleitores.
"Aqui [na Argentina] a direita tradicional está em uma crise, mas ainda tem 28% na votação, então essa é uma diferença. Mas, sim, está ficando uma polarização que vai para um confronto de propostas entre Massa e Milei, com visões opostas, principalmente sobre o papel do Estado na economia."
Propostas de ruptura com Brasil e BRICS podem isolar a Argentina
Sobre as propostas do candidato Milei de ruptura com parceiros importantes para a economia argentina, como Brasil e China, e com o BRICS, Goldstein afirma que são promessas que estão alinhadas à retórica da extrema-direita no mundo. Ele destaca que o candidato argentino chegou, inclusive, a mencionar o Foro de São Paulo como inimigo, assim como fez Bolsonaro em suas campanhas presidenciais.
"Milei falou que iria romper as relações com China e Brasil, por serem países comunistas. Isso tem a ver com essa extrema-direita que está surgindo no mundo, na América Latina, em particular, que é muito pró-EUA e contra a China, nessa nova guerra fria entre EUA, China e Rússia. Ele tem uma rejeição muito forte pelo Lula, já falou que ele dava apoio para o golpe que não prosperou [no Brasil] em janeiro de 2023, afirmando que era um protesto da liberdade contra o ditador comunista. E Lula destacou marqueteiros para ajudar na campanha do Massa, então Milei está falando que é o Foro de São Paulo contra a sua candidatura à presidência. Então, vai ficar uma situação inédita de tensão na relação com o Brasil e com a China, se o Milei ganhar na Argentina", explica Goldstein.
Ele alerta que uma vitória de Milei, com essa retórica, pode levar a um isolamento muito grande da Argentina na América Latina.
"Vai ser um isolamento muito grande porque Chile, Brasil, Colômbia, México e outros países são governados por uma centro-esquerda, e tem uma centro-direita mais racional no Paraguai e no Uruguai, que também vão ficar incomodados com a presidência do Milei. Então, acho que a consequência vai ser o isolamento da Argentina na região com o principal parceiro, que é o Brasil, mas também com outros parceiros importantes."
Velasco, por sua vez, tem uma visão pragmática sobre a capacidade de Milei de colocar em prática as promessas radicais de ruptura de sua campanha.
"Claro que pode haver uma sacudida grande, resta saber qual vai ser, efetivamente, o grau de externalidade para levar a rupturas tão amplas. Já tivemos exemplos recentes, no próprio Brasil, em que o Bolsonaro prometia rupturas mais profundas em política externa, sugeria, por exemplo, a transferência da embaixada do Brasil em Israel [de Tel Aviv] para Jerusalém, coisa que não aconteceu. Então, não se sabe até que ponto essas falas do Milei são viáveis em termos práticos, considerando o que é a política externa argentina, que tem uma instituição forte, que é o Palácio San Martín, que é o Itamaraty deles."
Porém, ele destaca que, para o Brasil, seria uma dor de cabeça ter de lidar com Milei, que revela um desprezo pelo Mercosul, pelas relações com o entorno latino-americano e o BRICS, em um momento que a Argentina está para ser acolhida no BRICS na
ampliação prevista para o próximo ano.
"O Brasil precisa muito de uma relação positiva com a Argentina, até em nome de uma integração sul-americana, latino-americana, para fazer o Mercosul caminhar melhor. Mas é possível que muito do que Milei sugere não seja viável, uma vez assumindo a Casa Rosada. Mas é um problema, é colocar muitas pautas que hoje são importantes para a Argentina em xeque, o que poderia levar a uma mudança abrupta", explica Velasco.
Ele acrescenta que "é inviável para a Argentina abandonar as relações com o Brasil ou com a China, que são os dois grandes parceiros comerciais do país".
"A Argentina não sobrevive sem uma relação muito densa e muito pragmática com esses dois players [Brasil e China]. Então, os condicionantes da realidade podem acabar limitando as ações de Milei."
Por fim, questionado se uma eventual vitória de Massa pode contribuir para retirar a Argentina da crise econômica, Velasco afirma que, nesse momento, "é difícil saber efetivamente até que ponto existe uma saída no curto e médio prazo para a Argentina".
O pesquisador indica que Sergio Massa tem sido muito questionado, porque quando assumiu o Ministério da Economia, com superpoderes, prometeu uma melhora substantiva na situação econômica do país, mas não conseguiu.
"Continuamos vendo o dólar derretendo na Argentina, no câmbio paralelo já ultrapassou os mil pesos. Isso é um problema para o país, sinaliza uma perda absoluta de confiança recorrente na economia. A inflação continua elevada, e era um dos principais alvos da gestão do Massa. Então, ele ocupando a presidência não parece ter uma agenda econômica muito certeira. É possível que vejamos mais do mesmo, o que definitivamente não tem dado muito certo", explica Velasco.
Ele finaliza afirmando ser difícil que alguma medida, ao longo de um governo, possa resgatar credibilidade na economia do país.
"Esse é o grande drama e é o que os governos recentes não conseguiram. Macri, quando assumiu em 2015, prometia o resgate da credibilidade, e não conseguiu. Fernández assumiu prometendo o mesmo, e não conseguiu. Os dois com orientações bem diferentes em termos econômicos. Então, é difícil imaginar que Massa ou mesmo Milei consigam resgatar a credibilidade em uma economia tão abalada por crises recorrentes. Porque os problemas são estruturais, o que acaba levando à retirada de investimentos, surto inflacionário. O quadro é complicado, acho que nenhum dos dois tem muita ideia do que poderiam fazer para tirar a Argentina da crise, embora na retórica de campanha prometam soluções para isso tudo, no caso do Milei, soluções bem mirabolantes", conclui Velasco.