Israel não aceitará proposta dos EUA para futuro da Faixa de Gaza, diz analista
12:00, 9 de novembro 2023
Propostas sobre o futuro da Faixa de Gaza opõem publicamente a administração Biden nos EUA e o governo de Israel. A Sputnik Brasil conversou com especialistas para saber quem poderá governar o que restará do território após a operação israelense.
SputnikNesta quarta-feira (8), o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, defendeu a criação de um governo palestino unificado na Faixa de Gaza, após a conclusão da operação terrestre israelense.
O futuro da Faixa de Gaza "deve incluir uma governança liderada por palestinos, unificada ao território da Cisjordânia, sob a égide da Autoridade Palestina", disse Blinken durante encontro do G7 no Japão.
Nesta segunda-feira (6), o chefe da diplomacia dos EUA declarou ao Congresso norte-americano que uma Autoridade Palestina "revitalizada" deveria assumir a liderança na Faixa de Gaza, hoje dominada pelo grupo Hamas.
"Em algum momento, o que faria mais sentido seria que uma Autoridade Palestina eficaz e revitalizada tivesse a governança e, em última análise, a responsabilidade pela segurança de Gaza", disse Blinken a senadores.
Para o pesquisador do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais e professor de Relações Internacionais da PUC-SP Bruno Huberman, a proposta de Blinken busca repetir o modelo de governança da Autoridade Palestina na Cisjordânia.
"Os americanos não têm alternativa a essa proposta. O argumento deles é que reestabelecer a Autoridade Palestina, sob a liderança do [partido] Fatah na Faixa de Gaza abriria caminho para retomar as negociações de paz", disse Huberman à Sputnik Brasil.
A Autoridade Palestina foi criada durante os Acordos de Oslo de 1993 para atender às necessidades civis e de segurança da população palestina em determinadas áreas da Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Atualmente, a Autoridade Palestina é controlada pelo partido Fatah, criado em 1959 pelo líder Yasser Arafat.
"A verdade é que a Autoridade Palestina tem se engajado em cooperação política e de segurança com os EUA e com Israel. O Fatah se comprometeu a deixar a luta armada e se engajar em negociações políticas, que não trouxeram nenhum resultado para os palestinos nos últimos 30 anos", explicou Huberman. "Por isso, a legitimidade da Autoridade Palestina entre os palestinos enfraquece, enquanto o Hamas se fortalece."
A proposta dos EUA de impor um
governo do Fatah na Faixa de Gaza poderia minar ainda mais a sua relação com a sociedade civil. Antes mesmo da operação israelense em julho deste ano, grupos armados palestinos na cidade de Jenin, na Cisjordânia, já pediam a deposição do Fatah,
reportou o portal Middle East Monitor.
A Autoridade Palestina também reprime protestos na Cisjordânia contra a operação israelense, prejudicando sua imagem perante a população local.
"A Autoridade Palestina exerce um poder coercitivo bastante duro e perseguições políticas, nada muito diferente do que o Hamas faz", disse Huberman. "A imagem que temos de uma Fatah mais liberal, progressista e democrática nem sempre condiz com a realidade."
Para ele, "reinstalar a Autoridade Palestina em Gaza pode ser uma proposta palatável para os EUA e demais atores regionais, mas a verdade é que pioraria a legitimidade da Fatah ainda mais", disse o professor da PUC-SP. "No pior cenário, teríamos uma guerra civil entre os palestinos."
O obstáculo Hamas
A implementação da proposta norte-americana tem como principal obstáculo a presença do braço militar do Hamas na Faixa de Gaza.
"No contexto atual, o Hamas não abrirá mão do poder, terá que ser obrigado a fazer isso militarmente", considerou Huberman. "Israel teria que tomar medidas coercitivas e impor o governo da Fatah através da força."
No entanto, a derrota do Hamas não seria a única forma de lograr um governo de unidade nacional palestina.
"Claro que existiam
maneiras de retirar o Hamas do poder de forma diplomático-política: reconhecendo-o como um partido, tal qual o Fatah, e inserindo-o no jogo político como uma contraparte legítima", acredita Huberman.
O reconhecimento do Hamas como organização terrorista por países como Israel e EUA impõe um sério obstáculo à reconciliação entre Autoridade Palestina e Hamas, aponta a doutora em Relações Internacionais pelo Santiago Dantas (PUC-SP/UNICAMP/UNESP) Isabela Agostinelli.
"A Autoridade Palestina depende de doações financeiras estrangeiras, que vêm com condicionalidades. Uma delas é que a Autoridade Palestina não se engaje com grupos considerados terroristas por Israel ou pelos EUA – como o Hamas", disse Agostinelli à Sputnik Brasil.
Segundo ela, a "Autoridade Palestina não pode nem manter contatos com organizações da sociedade civil palestina, como ONGs, que Israel classifica como apoiadores de terroristas, o que impõe sérias
limitações às suas relações com a própria sociedade local."
O obstáculo Netanyahu
A
proposta do Departamento de Estado dos EUA tampouco parece agradar ao governo israelense. Nesta terça-feira (7), o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu declarou que Israel terá papel central no controle de Gaza após a conclusão de sua operação terrestre.
"Acho que Israel terá, por um período indefinido, a responsabilidade geral pela segurança [na Faixa de Gaza], porque vimos o que acontece quando não a temos",
disse Netanyahu à rede norte-americana ABC News. "Quando não temos essa responsabilidade pela segurança, o que temos é a erupção do terror do Hamas numa escala que não poderíamos imaginar."
Para Agostinelli, a fala de Netanyahu "é uma obviedade", afinal "Israel está a cargo da segurança da Faixa de Gaza há muito tempo".
"Quando Israel retirou assentamentos da Faixa de Gaza em 2005, seu Ministério da Defesa publicou um plano de desengajamento que previa o continuado controle de fronteiras e fluxo de pessoas em Gaza", disse Agostinelli. 'Isso sem falar no controle da circulação de produtos e do fornecimento de água e eletricidade."
Segundo ela, "mesmo após a retirada israelense, o Ministério da Defesa continuou sendo o ator mais importante na região, controlando todos os aspectos da vida cotidiana da Faixa de Gaza".
Em
entrevista exclusiva à Sputnik Brasil, um refugiado palestino relatou como o controle das fronteiras marítima, terrestre e do espaço aéreo de Gaza por autoridades israelenses se dá na prática.
"Se você chega perto da fronteira, acho que 500 metros, você vai ser morto. Em um ano, durante a minha vida lá, mataram milhares", disse o refugiado. No caso da fronteira marítima, pescadores que atinjam o limite de seis quilômetros da linha da praia "são mortos ou presos".
Em relação ao fornecimento de eletricidade em Gaza antes da operação israelense, o refugiado relata que "costuma durar oito horas por dia, mas geralmente é de quatro a seis horas. A água vem por duas horas e ficamos sem ela por doze, e assim por diante".
"Não vejo num futuro próximo nem distante que Israel abra mão do controle da segurança na Faixa de Gaza. Pelo contrário, há um recrudescimento do controle das fronteiras", considerou Agostinelli. "Israel não terá interesse em repassar essa função para a Autoridade Palestina, que não conta sequer com um braço armado."
Em 27 de outubro, as Forças de Defesa de Israel iniciaram uma operação terrestre de larga escala na Faixa de Gaza, com o objetivo declarado de destruir as forças do Hamas na região.
De acordo com o Ministério da Saúde de Gaza, as forças de Israel fizeram 10.812 vítimas civis na Faixa de Gaza, incluindo 4.412 crianças, e deixaram 26.905 civis feridos. Nesta quarta-feira (8), as Forças Armadas de Israel afirmaram que seu rival
perdeu o controle da região norte da Faixa de Gaza.