Neste domingo (5), o ministro do Patrimônio de Israel, Amichai Eliyahu, chocou a comunidade internacional ao considerar o uso de armas nucleares contra a Faixa de Gaza "uma possibilidade", para providenciar uma "resposta poderosa e desproporcional".
A porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Rússia, Maria Zakharova, considerou as declarações sobre possibilidade de uso de armas nucleares contra a Faixa de Gaza "provocativas e absolutamente inaceitáveis".
"No contexto da política histórica de incerteza de Israel em relação à posse de armas nucleares, estas declarações não só confirmam claramente que este país possui tais armas, mas também demonstram uma vontade de considerar seriamente a possibilidade da sua utilização em cenários completamente inadequados", disse Zakharova.
Segundo ela, a declaração do ministro israelense ainda levanta uma série de questionamentos que devem ser considerados pela comunidade internacional.
A representante oficial do Ministério das Relações Exteriores da Rússia, Maria Zakharova, participa de seu briefing semanal em Moscou, na Rússia, em 10 de outubro de 2022
© Serviço de imprensa do Ministério das Relações Exteriores da Rússia
"Pergunta número um: estamos diante de declarações oficiais sobre a existência de armas nucleares [em Israel]? A próxima pergunta que todos estão se fazendo é: onde estão as organizações internacionais? Onde está a Agência Internacional de Energia Atômica? Onde estão os inspetores?", questionou a representante oficial da chancelaria russa.
A declaração do ministro israelense também foi condenada por países como EUA, Catar, Arábia Saudita e Síria. A má repercussão levou o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu a suspendê-lo do cargo "até nova ordem", alegando que as declarações "não têm base na realidade".
Arsenal israelense
A existência de arsenal nuclear em Israel é dada como certa pela comunidade internacional, apesar da recusa do país em confirmar a sua capacidade. Dados do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI, na sigla em inglês) estimam que Israel possua aproximadamente 80 armas nucleares, das quais 30 seriam bombas gravitacionais para entrega por aeronave e 50 destinadas a mísseis balísticos de médio alcance Jericho II.
"Esse arsenal reforça a superioridade militar de Israel na região, que já é inconteste mesmo se considerarmos somente os armamentos convencionais", disse o professor da UNICAMP e pesquisador da área de indústria aeroespacial e de defesa, Marcos José Barbieri Ferreira, à Sputnik Brasil.
Os dados abertos ainda indicam que Israel dispõe de meios de entrega em terra, mar e ar que poderiam ser empregados como vetores de lançamento de armas nucleares.
"Primeiro, Israel possui caças F-16 e F-15 [...] que têm capacidade para transportar armamentos nucleares", explicou Barbieri Ferreira. "Segundo, tem mísseis de cruzeiro e balísticos da família Jericho que podem levar ogivas nucleares e, terceiro, dispõe de submarinos convencionais alemães Dolphin que também poderiam tranquilamente ser equipados com armamentos nucleares."
Dois caças F-16 israelenses e um norte-americano durante os exercícios militares em Israel, em janeiro de 2022
© Foto / Forças de Defesa de Israel
No entanto, a política de opacidade impede que Israel realize testes nucleares ou mesmo demonstre suas capacidades para garantir a dissuasão do inimigo.
"A dissuasão nuclear implica demonstrar o seu poder de infligir uma perda a seu adversário e, assim, evitar um ataque. Nesse contexto, os países nucleares demonstram o seu poderio, como o faz, por exemplo, a Coreia do Norte", apontou Barbieri Ferreira. "Israel é um dos únicos países nuclearmente armados que não adota essa postura."
A ausência de testes nucleares públicos levanta questionamentos sobre a eficácia dos armamentos nucleares de Israel. Por outro lado, existem indícios de que o Estado judeu tenha realizado testes durante o século XX com o auxílio de países parceiros, como os EUA, França e África do Sul.
Opacidade nuclear
O motivo pelo qual Israel opta pela política de opacidade nuclear, que consiste em não admitir a existência de seu arsenal, é objeto de debate entre especialistas.
"Alguns autores apontam que há um tabu interno em Israel que leva ao não reconhecimento", disse a professora de Relações Internacionais da PUC-MG, Raquel Gontijo, à Sputnik Brasil. "Na origem da era nuclear, Israel havia se posicionado dizendo que não seria o primeiro país a introduzir armas nucleares na região do Oriente Médio, já bastante conflituosa. Na prática não foi isso o que ocorreu, mas o peso da história permanece."
Míssil Arrow israelense é disparado de uma base secreta da Força Aérea israelense ao sul de Tel Aviv, Israel, 16 de dezembro de 2003
© AFP 2023 / Forças de Defesa de Israel
Outro motivo seria evitar deflagar uma corrida nuclear no Oriente Médio, acredita o professor da UNICAMP, Barbieri Ferreira.
"Ao que tudo indica, Israel não admite ter essas armas para que isso não seja utilizado como argumento para que outros países da região desenvolvam seus próprios programas nucleares", considerou Barbieri Ferreira. "E sabemos que Israel adota uma política incisiva para impedir que seus vizinhos adquiram armas nucleares."
O professor lembra casos como o ataque israelense ao reator nuclear iraquiano Osirak em 1981, o ataque às instalações nucleares de al-Kibar e Deir ez-Zor na Síria e os ataques cibernéticos utilizando os vírus Stuxnet e Flame, não confirmados por Israel, contra o programa nuclear iraniano.
Máquinas centrífugas alinhadas no salão nas instalações de enriquecimento de urânio de Natanz, danificadas em 11 de abril de 2021, 322 km ao sul de Teerã, Irã, 17 de abril de 2021
© AP Photo / Radiotelevisão da República Islâmica do Irã
Além disso, manter a opacidade nuclear pode inclusive aumentar a dissuasão israelense, uma vez que os inimigos não têm percepção clara sobre quais as capacidades de Israel ou mesmo sobre a sua doutrina nuclear, que indicaria os cenários possíveis para uso desses armamentos.
"Nesse momento, Israel tem muito pouco a ganhar ao abrir mão da opacidade. O seu arsenal já é público e todos sabem que Israel tem uma capacidade nuclear muito significativa", considerou Raquel Gontijo.
Uso na Faixa de Gaza
As declarações do agora ex-ministro de Israel, Amichai Eliyahu, não foram as únicas feitas por autoridades israelenses cogitando o uso de armas nucleares contra alvos na Faixa de Gaza.
Pouco após os ataques do Hamas em 7 de outubro, a parlamentar israelense Rivatal Tally Gotliv também fez apelos para que Israel recorresse a uma arma do "dia do juízo final" para responder aos ataques.
"Apenas uma explosão que abale o Oriente Médio vai restaurar a dignidade, a força e a segurança deste país! É hora de beijar o dia do juízo final", escreveu Gotliv na plataforma X (antigo Twitter).
A professora de Relações Internacionais da PUC-MG Raquel Gontijo, no entanto, não acredita que Israel recorrerá ao seu arsenal nuclear neste momento.
"A probabilidade de Israel usar uma arma nuclear nesse conflito contra o Hamas é baixa", considerou Gontijo. "O conflito é extremamente assimétrico, já que as forças armadas de Israel têm capacidade muito superiores às do Hamas e de seus vizinhos árabes."
Fumaça sobe após um ataque aéreo israelense na Faixa de Gaza, visto do sul de Israel, em 31 de outubro de 2023
© AP Photo / Ariel Schalit
Além disso, o apoio internacional a Israel se encontraria desgastado tanto entre a opinião pública, quanto entre governos normalmente simpáticos à sua causa.
"Se Israel utilizasse armas nucleares nesse conflito, a reação internacional seria muito forte [...], inclusive nos EUA", acredita Gontijo. "Portanto, os custos de usar armas nucleares seriam maiores do que os benefícios, que seriam arrasar um território que já está em posição de vulnerabilidade."
A especialista não exclui, no entanto, a possibilidade de Israel vir a utilizar essas armas caso seja confrontado por uma aliança entre países árabes que "de fato representasse uma ameaça existencial ao Estado de Israel", mas reitera que "isso não é o que está colocado agora".
A operação terrestre israelense na faixa de Gaza teve início em 27 de outubro, com o objetivo de retaliar os ataques realizados pelo grupo palestino Hamas em seu território, no dia 7 do mesmo mês. De acordo com dados do Ministério da Saúde de Gaza, publicados em 9 de novembro, as forças de Israel fizeram 10.812 vítimas mortais civis na Faixa de Gaza, incluindo 4.412 crianças, e deixaram 26.905 civis feridos.