Escalada de conflitos ao redor do globo, instabilidades políticas dentro da própria América Latina e até a histórica tensão entre Argentina e o Reino Unido pelas ilhas Malvinas. Em mais um movimento de retomada da integração entre os países do continente, o Itamaraty recebeu nesta semana a "Primeira Reunião Sul-Americana de Diálogo entre Ministros da Defesa e das Relações Exteriores", que terminou com uma declaração conjunta sobre o panorama regional e internacional.
Entre os principais pontos acordados está a visão comum de uma região de paz e cooperação, "onde prevalecem o diálogo e o respeito à diversidade, comprometida com a democracia e os direitos humanos". Além disso, os ministros se comprometeram a realizar encontros anuais e estabelecer uma rede de contatos que pode se reunir regularmente de forma presencial ou virtual. Os anfitriões do encontro foram os ministros brasileiros da Defesa, José Múcio, e das Relações Exteriores, Mauro Vieira.
O professor Héctor Saint-Pierre, doutor em filosofia política e coordenador-executivo do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI) da Universidade Estadual Paulista (Unesp), disse à Sputnik Brasil que o encontro em Brasília representa uma retomada do projeto de integração regional que foi marca dos governos anteriores do Partido dos Trabalhadores (PT), principalmente dos dois primeiros mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Porém o especialista lembrou que a Argentina, principal parceiro brasileiro no continente, se tornará uma interrogação sobre a continuidade do diálogo conjunto sul-americano em virtude da eleição de Javier Milei.
"Ainda é muito difícil saber quais são os próximos passos, principalmente por conta dos resultados das eleições argentinas, que provavelmente passará a ter um alinhamento estratégico automático com os Estados Unidos, de retomada de uma relação carnal", frisou. E, segundo o especialista, os norte-americanos veem a integração sul-americana como contrária aos seus interesses, já que torna a região "uma voz muito mais poderosa e forte" no cenário internacional: "Em última instância, são 13 votos [quantidade de países do continente] em todos os fóruns internacionais", acrescenta Saint-Pierre sobre a cooperação.
Para o professor, também há uma situação diferente no continente quando comparada aos anos do segundo mandato de Lula, quando pautas comuns conseguiram grandes avanços. "Hoje a América do Sul não tem aquela sintonia ideológica e política como na primeira década deste século. Acredito que atualmente será mais difícil avançar em agendas importantes como a regulamentação das fronteiras."
Apesar dessas diferenças, o especialista lembra que em um cenário internacional cada vez mais multipolar, é crucial a busca por posições comuns para a estabilidade regional.
"É muito importante que a América do Sul, independentemente das correntes políticas dos governos nacionais, busque acordos em prol de uma posição intermediária global, que defenda a neutralidade da região em relação a possíveis conflitos que possam surgir em meio à instabilidade dos sistemas internacionais", disse.
Defesa e diplomacia
Conforme Saint-Pierre, o diálogo entre os pares sul-americanos da Defesa e das Relações Exteriores é um importante instrumento de cooperação. "São justamente as duas gramáticas da política externa, e, resumidamente, acredito que esse seja o modelo mais adequado para os esforços de integração. A defesa de um país é também o exercício da sua política externa."
O especialista ainda acrescenta que em todos os exercícios bélicos conduzidos atualmente no mundo há, em paralelo, a tentativa da diplomacia para apaziguar os ânimos. "Ou seja, a violência é acompanhada pela diplomacia tanto para tentar tréguas, armistícios, troca de prisioneiros, quanto até mesmo para fazer, digamos, articulações políticas fora do campo de batalha", disse.
Regulamentação das fronteiras
Um dos temas mais caros à América do Sul, a questão das fronteiras entre os 11 países que estiveram no encontro também ficou de fora. Essas regiões são conhecidas por conta da forte atuação do tráfico de drogas e de organizações criminosas, que inclusive têm o Brasil como principal passagem dos entorpecentes para a Europa e a América do Norte.
O analista defendeu que o tema também deve envolver, para além da Defesa e das Relações Exteriores, a integração entre a inteligência policial dos países, que seria crucial para combater o crime. "Não é aumentando a densidade de militares nas fronteiras que vai resolver o problema. Não tem nada a ver com isso, tem a ver com a inteligência, e seria muito importante a cooperação, especialmente policial e de inteligência financeira. O crime organizado não funciona onde o Estado não está presente. O tráfico não vai acontecer nos lugares mais remotos das fronteiras. O crime organizado passa por onde há logística, onde há pontes, onde há barreiras", finalizou.