Antes de mais nada, é preciso constatar que, desde o ano passado, um número cada vez maior de Estados manifestou interesse em se juntar ao BRICS, dentre eles muitos países do Oriente Médio, mas também da América do Sul, como é o caso da Argentina. No Cone Sul do continente americano, aliás, o Uruguai já é um dos quatro países que aderiram por exemplo ao Novo Banco de Desenvolvimento do BRICS (NBD), com Bangladesh, Emirados Árabes Unidos e Egito, ampliando o alcance da instituição na vizinhança imediata do Brasil.
Uma futura adesão da Argentina ao BRICS, portanto, serviria para reforçar não só o peso latino-americano no grupo, como o peso político do próprio Brasil. Afinal, a entrada da Argentina representaria uma vitória da diplomacia brasileira, pois traria ao BRICS seu principal parceiro regional e um dos fundadores do Mercosul. O Mercosul, por sinal, estabelecido por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai no começo dos anos 1990 com o intuito não só de promover a livre circulação de bens e serviços entre os Estados, tem diminuído os entraves ao comércio, mas também coordenado posições comuns em fóruns econômicos internacionais, reafirmando o papel da América Latina no plano global.
O BRICS, por sua vez, ao representar um modelo de associação fundamentado na liderança "coletiva" e na defesa da multipolaridade, coaduna-se perfeitamente com os objetivos políticos do próprio Mercosul e de seus países-fundadores principais, justamente Argentina e Brasil. O fortalecimento e ampliação do BRICS na América Latina seria então capaz de redefinir os contornos da ordem geopolítica do século XXI, uma ordem que se mostra cada vez mais voltada para o atendimento dos interesses da "maioria global".
Essa nova ordem, que beneficia na prática tanto ao Brasil quanto à Argentina, trata-se de uma ordem sem a dominância de um único país ou de um pequeno grupo de países, representado pelo G7, dando assim maior voz a potências emergentes. Trata-se, em resumo, da construção de um mundo mais justo, que tem sido o principal objetivo do BRICS desde a sua criação e sua principal força-motriz na reformulação das relações internacionais.
Javier Milei, por outro lado, apontou durante toda a sua campanha eleitoral para uma associação política quase que acrítica aos Estados Unidos e aos poderes estabelecidos, de modo que muito se tem especulado – com algum fundamento – que a Argentina não se unirá ao BRICS em 2024, o que será uma espécie de derrota diplomática para o Brasil. Vale lembrar que Lula e seu governo, bem como a administração anterior de Alberto Fernández na Argentina, detinham o histórico de participação em movimentos políticos de fortalecimento regional como é o caso da CELAC e do Mercosul (já mencionado).
A Argentina de Milei, no entanto, provavelmente abdicará de seus esforços nessas instituições, afastando-se ao mesmo tempo de Brasil e China, caso as predileções do novo presidente argentino sejam levadas a cabo. Cortar, por sua vez, relações comerciais com Brasília e Pequim por conta de diferenças ideológicas será de mais difícil consecução para Milei, dado o grande impacto negativo que essa atitude causará para a economia do país. Todavia, não aceitar o convite para fazer parte do BRICS pode sim estar ao alcance do futuro mandatário da Casa Rosada, diminuindo o potencial da América Latina nesse que tem sido um dos principais grupos para a defesa dos interesses do chamado Sul Global.
Por outro lado, Lula continuará exercendo sua liderança na defesa da multipolaridade e do multilateralismo nas relações internacionais, em flagrante dissonância ao discurso de Milei, que não vê importância no engajamento da Argentina nessas discussões. Seja como for, Rússia e China, dois dos países com os quais Milei também manteve importantes diferenças no âmbito de sua retórica pré-eleitoral, já manifestaram interesse em trabalhar de forma construtiva e pragmática com a Casa Rosada.
Diante desse contexto, ainda que a Argentina não entre para o BRICS, a relação estratégica do Brasil com o país vizinho deve ser mantida na medida do possível, com exceção de situações que venham a prejudicar o interesse nacional. Afinal, não será a primeira vez que ambos os países foram governados por líderes com visões divergentes sobre a ordem global. Por mais que sejam próximos geográfica e culturalmente, importantes diferenças no plano de política externa sempre existiram entre Brasil e Argentina, o que não quer dizer necessariamente que eles devam entrar em rota de colisão.
Se hoje as relações já não podem ser tão próximas como antes, sobretudo em termos da consolidação de uma América Latina mais autônoma, ao menos podem ser mantidos os laços econômicos, sociais e comerciais entre Brasília e Buenos Aires. Diferentemente da Argentina de Milei, portanto, o Brasil de Lula continuará caminhando de forma assertiva no sentido de defender uma ordem mundial multipolar, através de sua cooperação com potências como China, Rússia, Índia e os novos membros que passarão a integrar o BRICS no ano que vem.
Assim sendo, mesmo que o Brasil seja o único país latino-americano a participar do agrupamento, isso não vai esmorecer a luta do país pela reforma das instituições internacionais de governança global, junto ao BRICS e junto a outros atores importantes do Sul Global. Ao mesmo tempo, para o Brasil a Argentina continuará sendo, independentemente do governo, um potencial parceiro na construção de um lugar especial para a América Latina no mundo.
Milei poderá até ser capaz de estabelecer relações mais próximas com os Estados Unidos, ignorar o BRICS, afastar-se politicamente do Brasil e da China. Mas o que Milei não será capaz de fazer é paralisar esse novo momento em direção a uma ordem que atenda aos anseios da "maioria global". Sim, o Brasil ganharia com a participação de Buenos Aires no BRICS, mas se ela não ocorrer, também não é razão para desespero. Afinal, a luta por um mundo multipolar continua a todo vapor, mesmo com a "Argentina Afuera".
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