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Marinha terá sucesso em programas de autossuficiência em urânio e no submarino nuclear brasileiro?

Um programa que fez o Brasil entrar no seleto grupo de 13 países que dominam o enriquecimento de urânio para as diversas aplicações no campo nuclear. Iniciada em 1979, a iniciativa da Marinha sempre teve como foco a autossuficiência brasileira e a viabilização do submarino nuclear. Mas, passados 44 anos, quais foram os êxitos do projeto?
Sputnik
Ainda era governo do então presidente Juscelino Kubitschek quando o Brasil inaugurou, em 1958, o primeiro reator nuclear de pesquisa da América Latina. Esse grande passo permitiu o início de estudos nas mais diversas áreas: produção de energia, defesa e até saúde, com os então inovadores radiofármacos. A partir da década de 1970, veio o projeto para a construção de três usinas nucleares no litoral do Rio de Janeiro, entre os dois principais polos urbanos do país (a capital fluminense e São Paulo): Angra 1, Angra 2 e Angra 3.
A primeira estrutura foi conectada ao sistema elétrico nacional em 1985, após 13 anos de obras. Ainda maior, a segunda começou a funcionar em 2001, e, juntas, são responsáveis atualmente por 3,1% da geração de energia no país.
Já a última, cuja construção foi iniciada em 1984, até hoje não saiu do papel. Paralelamente a tudo isso e de forma autônoma, a Marinha do Brasil iniciou, em 1979, seu programa nuclear com dois focos principais: o enriquecimento de urânio, combustível usado nas usinas, e, consequentemente, buscar a autossuficiência do país no processo; e o ousado submarino nuclear.
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Qual a importância da energia nuclear para o Brasil?

Apesar de ser considerado pequeno na comparação com grandes potências mundiais, todo esse histórico fez o Brasil criar um estruturado setor nuclear que vai além da geração de energia elétrica. Membro da Academia Nacional de Engenharia (ANE), o almirante Alan Paes Leme Arthou atuou no projeto de desenvolvimento do submarino com propulsão nuclear da Marinha por quase 15 anos e à Sputnik Brasil classificou como lentos, mas valorosos os avanços do país na área.

"Esse 'valoroso' vai para todo o pessoal da área que trabalha incansavelmente para conquistar coisas sobre as quais ninguém fornece informação e que realmente fazem muito bem para o Brasil, com grande evolução e um arraste tecnológico monstruoso. Esse desenvolvimento da área nuclear acaba servindo para outras coisas, tanto na área médica quanto mecânica e industrial. O que vem das pesquisas nucleares é uma lista imensa", resume o especialista.

O Programa Nuclear da Marinha, para o qual o almirante atuou ativamente, foi o que conquistou mais sucesso no Brasil, tendo também estudos conduzidos pela área civil do governo, pelo Exército e pela Aeronáutica. "Na época, o almirante Othon [Luiz Pinheiro da Silva, uma das principais figuras responsáveis pelo programa nuclear brasileiro] viu tudo que estava sendo feito na Aeronáutica e achou que seria melhor tentar partir para a ultracentrifugação [no enriquecimento do urânio]. E ele estava certo", acrescenta Arthou.

Como o Brasil enriquece urânio?

Desde então, o Brasil começou o domínio da tecnologia de enriquecimento do urânio desenvolvida pelo Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo a partir da década de 1980. E o programa da corporação tem a meta de chegar à autossuficiência na produção do combustível nuclear até 2033 — estimativa para atender a 100% da demanda das usinas Angra 1 e Angra 2, e até 2037 para abastecer a futura Angra 3. Isso será possível após a finalização, no ano passado, da primeira fase da usina de enriquecimento de urânio de Resende (RJ).
O professor do Departamento de Energia Nuclear da Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Aquilino Senra disse à Sputnik Brasil que o objetivo só não foi conquistado muito antes por falta de investimento, já que a tecnologia já está dominada há muito tempo.

"Tudo foi desenvolvido de forma autônoma [pela Marinha e por institutos de pesquisa], e isso é uma conquista fantástica [deter a tecnologia], que eu comparo com o domínio tecnológico da prospecção de produção de petróleo em águas profundas ou da indústria aeronáutica, que fez o Brasil ter a terceira maior montadora [de aviões comerciais do mundo], que é a Embraer", defende.

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O que o Brasil faz com o urânio?

Outro benefício da autonomia brasileira no beneficiamento do urânio é baratear o custo da energia elétrica produzida nas duas usinas em Angra dos Reis. "Não será uma redução drástica da tarifa, o maior gasto é com a manutenção de equipamentos e as paradas [técnicas] que são feitas. Porém há o custo do combustível, que deve ser reduzido em pelo menos 10%", prevê Senra.
Já com relação à conclusão de Angra 3, cujo anúncio da retomada das obras foi feito em julho pela Eletronuclear, o professor da UFRJ não é tão otimista e lembra que o projeto já tem quase 45 anos.

"É um absurdo completo, totalmente despropositado. Para você ter uma ideia, as usinas hoje estão sendo construídas no máximo de cinco a seis anos, no mesmo patamar. Todo o custo aumenta muito, o saco de cimento que se comprava há 40 anos deve ter triplicado. O Brasil precisa selecionar projetos estratégicos para o seu desenvolvimento e tocar isso sem atrasar um minuto, seja na liberação de recursos, seja na realização das obras, seja no compromisso técnico das empresas", argumenta.

Quando vai ficar pronto o submarino nuclear brasileiro?

Muitas vezes considerada a 'menina dos olhos' do Programa Nuclear da Marinha, a conclusão do projeto do submarino nuclear brasileiro ainda é uma incógnita, apontam especialistas ouvidos pela Sputnik, apesar da previsão da entidade para 2029.
A diferença com relação às outras embarcações aquáticas tradicionais é, segundo o almirante Alan Arthou, a autonomia durante as operações.

"Um submarino convencional consegue operar na velocidade de patrulha por até dois dias, dependendo do modelo. Ninguém vai detectá-lo, mas se usar a velocidade máxima para perseguir um alvo, a bateria vai durar duas horas. Ele é ótimo para fazer a defesa perto de um porto, por exemplo […], mas para realizá-la em profundidade ou mais distante [da costa], leva muita desvantagem em relação ao nuclear", exemplifica.

Apesar do nome, o último não carrega bombas ou armas, porém é movimentado por um reator nuclear. "Você pode ficar três meses submerso, o único limite desses três meses não é por causa do combustível do reator, que dura anos, mas é por causa principalmente do estresse [dos tripulantes]. O nível chega a um ponto que as pessoas começam psicologicamente a cometer erros após esse período", acrescenta o almirante, que lembrou que a extensão do litoral brasileiro é de quase 7,7 mil quilômetros.
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Submarino nuclear brasileiro: o boicote internacional

Para Aquilino Senra, outro motivo para além da questão orçamentária que atrasa a produção do submarino nuclear é justamente um boicote internacional.

"Está sendo feito o reator protótipo e, vamos assim dizer, é dominada a tecnologia, mas às vezes componentes precisam ser importados. Não por não termos capacidade no Brasil, mas ninguém vai fazer uma fábrica de válvulas, por exemplo, para atender a uma demanda pequena. E nisso vem o problema e a pressão dos países centrais, que não vão disponibilizar esses componentes", declara.

Por ser um grande avanço para a defesa brasileira, o especialista acredita que isso motiva a dificuldade das parcerias com outros países.

"São narrativas para impedir transferência de tecnologia e que outros países consigam desenvolver a tecnologia. Mas o Brasil, insisto, tem capacidade demonstrada de desenvolvimento tecnológico em diversas áreas; nessa também conseguiu um avanço, mas pressões internacionais sempre existirão."

Uma alternativa, segundo ele, são os membros do BRICS, "principalmente China e Rússia", que poderiam ser aliados para ultrapassar esse obstáculo.
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