As recentes tensões na região de Essequibo reascendem o debate sobre os gastos militares na América Latina. De acordo com o portal UOL, lideranças brasileiras expressaram preocupação com o aumento da presença dos EUA na Amazônia, o que poderia reforçar o papel da força militar na região nos próximos anos.
No entanto, segundo dados compilados pelo Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI, na sigla em inglês) e pelo Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS, na sigla em inglês), os gastos militares da América Latina estão entre os menores do planeta, perdendo somente para a África Subsaariana. Enquanto a América do Norte respondeu por 39,5% dos gastos militares mundiais e a Ásia por 25,7%, os latino-americanos investiram somente 2,6% do total.
"Temos uma particularidade na América do Sul que, desde 1930 não temos conflitos interestatais importantes – o único conflito militarizado que tivemos foi a disputa entre Peru e Equador na década de 90, muito localizado, que não envolveu outros países a não ser no processo de paz", disse a professora de defesa e gestão estratégica internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Adriana Marques, à Sputnik Brasil.
O orçamento militar brasileiro em 2022 ficou em US$ 22,6 bilhões (cerca de R$ 116 bilhões), muito inferior ao dos EUA, estimado em US$ 766 bilhões (cerca de R$ 3,7 trilhões), mas superior ao de todos os seus vizinhos latino-americanos. O segundo maior orçamento regional é o da Colômbia, seguido por Argentina e México.
"Outra particularidade da região é que suas Forças Armadas estão permanentemente voltadas para o controle das suas próprias populações", notou Marques. "Isso é um legado do passado colonial: as Forças Armadas estão mais preocupadas com a manutenção da ordem pública e controle do seu povo do que com a segurança externa."
Exército faz operação na favela Nova Holanda, no Complexo da Maré, zona norte do Rio de Janeiro.
© Foto / Tomaz Silva/Agência Brasil
Com a exceção da Argentina, que proíbe a atuação de suas Forças Armadas dentro do território nacional, os países latino-americanos muitas vezes usam seu poder militar para realizar operações similares às policiais.
"Isso tem impacto nos equipamentos militares que são adquiridos e o seu nível tecnológico", explicou Marques. "Se as nossas Forças Armadas têm como objetivo fazer Operações de Garantia da Lei e da Ordem [GLOs] em portos e aeroportos, não precisamos de mísseis potentes, mas outro tipo de equipamentos."
No mês de novembro, o governo Lula instaurou GLOs em portos e aeroportos de São Paulo e Rio de Janeiro para combater o crime organizado. A Marinha do Brasil está investindo em novos equipamentos para cumprir suas funções na GLO, "mas serão lanchas com nível tecnológico baixo, que poderiam ser operadas por guardas costeiras", apontou Marques.
Fuzileiros Navais em missão na Lancha de Operação Fluvial (LOF) do Grupo de Embarcações de Operações Ribeirinhas do Mato Grosso (GrEOpRibMT)
© flickr.com / Marinha do Brasil
"A ação rotineira em GLOs levou as Forças Armadas do Brasil a se policializarem. E no restante da América Latina muitas vezes a tendência é a mesma", disse a professora da UFRJ.
Aumento dos gastos com Defesa
A complexidade da situação geopolítica global, tensionada pelo conflito ucraniano e, mais recentemente, israelo-palestino, pode levar ao aumento dos gastos militares mundiais. Na América Latina, alguns governos já anunciam a intenção de expandir seus orçamentos de defesa.
No caso do Brasil, o Ministério da Defesa faz gestões pela aprovação de Projeto de Emenda Constitucional apresentado pela oposição, que prevê investimento mínimo de 2% do PIB brasileiro em projetos de defesa.
"A questão no Brasil é que 80% do orçamento de defesa é empregado para o pagamento de pessoal. Enquanto não melhorarmos a qualidade dos gastos, não adianta aumentar o orçamento", questionou Marques. "Não há garantia de que esse aumento será revertido em equipamentos de defesa, já que não há supervisão política ou civil do uso dos recursos por parte das Forças Armadas."
O Congresso Nacional deveria supervisionar os gastos das forças militares brasileiras, mas "simplesmente retificam o que os comandantes militares pedem anualmente", lamentou Marques.
O comandante do Exército, general Tomás Paiva, e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, durante cerimônia comemorativa do Dia do Exército, no Quartel-General do Exército, em Brasília, 19 de abril de 2023
© Foto / Marcelo Camargo/Agência Brasil
Além disso, os gastos militares regionais nem sempre são revertidos na geração de emprego e desenvolvimento tecnológico nacional, aponta a pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Estudos Estratégicos e Segurança Internacional da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Alana Monteiro.
"Há grande dependência de importações e fraca autonomia nas bases industriais", disse Monteiro à Sputnik Brasil. "Países como o Brasil, Chile, Argentina e Colômbia recebem maior destaque no desenvolvimento de bases industriais, ainda que limitados pelo direcionamento dos investimentos aplicados às estratégias expansionistas à defesa de cada governo."
Brasil líder inconteste na região?
Enquanto isso, a liderança militar do Brasil na América Latina está longe de ser inconteste, mostram dados do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS, na sigla em inglês). Apesar de o contingente militar brasileiro ser muito superior aos de seus vizinhos, o país não lidera em quesitos como tecnologia de caças e de tanques de batalha.
De acordo com o Military Balance 2023, somente 15% da frota de caças brasileira pode ser considerada "moderna", com os restantes 25% das aeronaves sendo classificados como "antigas" ou "obsoletas". Já o Peru, por exemplo, tem um número absoluto de aeronaves menor, mas 50% delas são consideradas "modernas", a exemplo dos jatos russos MIG-29. A Venezuela tem 62% das aeronaves consideradas modernas em seu arsenal.
Quando o assunto são tanques de batalha, o Brasil tem a liderança em quantidade, mas não em qualidade. Neste quesito, o Chile tem a frota mais moderna da região, com modelos Leopard 2-A4 mais avançados do que os brasileiros e viaturas blindadas norte-americanas e neozelandesas recém-adquiridas, reportou o Defesa.net.
Por outro lado, a força econômica brasileira, muito superior à de seus vizinhos, ainda garante a vantagem do país na América Latina, acredita Marques.
"Realmente não podemos dizer que estamos preparados para um conflito externos. Mas somos a nona economia do mundo em 2023, então temos condições de reverter essa assimetria rapidamente, revertendo poderio econômico em poderio militar", concluiu a professora da UFRJ.
Em agosto de 2023, o governo brasileiro aprovou investimento de R$ 53 bilhões em "tecnologias estratégicas" do setor de defesa, no âmbito do Novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Os recursos serão destinados a "fortalecer a Base Industrial de Defesa", que responde por 5% do PIB brasileiro, informou o Palácio do Planalto.