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Crise na Alemanha reflete sujeição de Berlim aos EUA e abre oportunidades para o Brasil, vê analista

Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam a decisão do governo alemão de retirar subsídios do setor agrícola, os reflexos que a medida trará para a cambaleante economia do país e como isso favorece países exportadores de alimentos, como Brasil e Rússia.
Sputnik
Recentemente a Alemanha anunciou planos para retirar subsídios do setor agrícola como forma de aumentar a arrecadação, dando fôlego à cambaleante economia do país.
A medida é uma aposta do governo do chanceler alemão, Olaf Scholz, para tentar livrar o Estado da iminente retração econômica prevista para 2024.
O anúncio, no entanto, foi recebido com furor por parte de agricultores, que protagonizaram na semana passada um tratoraço em Berlim contra a medida. Eles argumentam que a retirada dos subsídios vai abrir espaço para a concorrência no mercado alemão de países produtores de alimentos, como Brasil e Rússia.
Somado a isso, o governo alemão anunciou, na semana passada, o maior deslocamento de tropas militares da história moderna, mobilizando 5 mil militares para a fronteira da Lituânia com Belarus, próximo à Rússia. E anunciou uma joint venture de defesa formada pela fabricante nacional de armas Rheinmetall e por Kiev para manutenção e reparo de armamentos. Tudo isso em um momento de declínio do apoio da população europeia ao envolvimento do continente no conflito ucraniano.
Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas explicam como as decisões tomadas pelo governo Scholz podem agravar a situação alemã, por que o país vem priorizando as armas em detrimento da produção de alimentos e que oportunidades o cenário atual oferece ao Brasil.

Como é a agricultura na Alemanha?

Hugo Albuquerque, editor da Autonomia Literária e diretor do Instituto Humanidade, Direitos e Democracia (Ihudd), explica que os subsídios agrícolas alemães sempre foram usados historicamente pela Alemanha para calibrar a migração do campo para a cidade. "Os subsídios serviam para manter contingentes populacionais no campo, evitar o êxodo para as cidades e garantir uma segurança alimentar mínima."
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Ele acrescenta que, com o tempo, "a integração europeia favoreceu essa dinâmica, acelerando o processo de deslocamento das populações rurais alemãs, uma vez que grande parte das compras agrícolas da Alemanha passaram a ser feitas em países europeus menos desenvolvidos".
"Isso se expande, depois, no comércio mundial da Alemanha durante a globalização, sobretudo com a América Latina. A Alemanha compra produtos agrícolas desses países, os quais, pela vez deles, compram insumos industriais dos alemães para modernizar a própria agricultura."
Segundo Albuquerque, essa dinâmica, no entanto, não favorecia o Brasil, já que impedia o país de desenvolver a própria indústria.

"Quanto mais a Alemanha compra do Brasil, mais ela estimula a sua própria indústria e contribui para desindustrializar o Brasil. Agora a medida atual visa, possivelmente, reduzir o custo do Estado no curto prazo e estimular a migração rural para a cidade, com o objetivo de diminuir o preço salarial", destaca Albuquerque.

"Ou seja, os impactos objetivos do conflito na Ucrânia, em grande parte financiada ou suportada por Berlim, estão aparecendo aqui, nessa questão. Embora a medida ajude a agropecuária de países como o Brasil, o impacto de médio prazo, em termos de empobrecimento na Alemanha, é ruim mesmo para esse setor. De repente o efeito é uma soma zero. Em termos gerais, o comércio Brasil-Alemanha é melhor para Berlim", acrescenta.

Alemanha se submete aos EUA ao priorizar armas em vez de alimentos

Questionado sobre a decisão do governo alemão de priorizar o fornecimento de armas à Ucrânia, Albuquerque lembra que a Alemanha foi desarmada após ser derrotada na Segunda Guerra Mundial, o que deixou o país vulnerável e dependente da proteção militar estrangeira.

"Ela basicamente ficou sob o domínio estratégico americano, e assim continua sendo. Mas, de certa forma, essa relação se inverteu, com as tropas americanas servindo para proteger a Alemanha enquanto o país investia em outros setores. Em um dado momento, a presença das tropas americanas na Alemanha se tornou o elemento sem custos para Berlim, pois, de um lado, ela não precisava gastar em armamentos e, por outro, isso não tinha um custo geopolítico."

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Ele acrescenta que Donald Trump "foi o primeiro presidente americano a questionar isso, e colocou o bode na sala".

"Agora os alemães tiveram de realizar a vontade americana e ainda perderam muito dinheiro. A atual guerra na Ucrânia sacrifica recursos alemães e, ainda por cima, faz com que eles abalem sua relação com a Rússia, uma importante fornecedora de energia. O fato é que, apesar de tudo isso, a Alemanha recebeu a má notícia de que vai precisar se armar por conta própria, porque acabou a relação conveniente com a OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte]."

Albuquerque afirma que essa mudança demandaria um esforço alemão para "uma reconversão tecnológica da indústria alemã".
"A questão é que, a partir de agora, falta energia para bancar uma indústria do porte da alemã em todos os casos. E sem a Rússia, as condições de compra de energia pela Alemanha não só pioram no preço como na constância e segurança", explica o especialista.
"O fato é que a Alemanha tem uma estrutura militar muito abaixo da sua potência econômica. Isso sempre foi usado de maneira esperta por Berlim, até dar redondamente errado: por qual razão você acha que a Alemanha fez exatamente o que os Estados Unidos queriam acerca da questão russo-ucraniana? Não só pela supremacia ideológica e cultural americana, mas também pela superioridade militar e estratégica concreta dos Estados Unidos sobre ela, Alemanha", acrescenta.
Segundo Albuquerque, a joint venture anunciada com a Ucrânia não reflete um esforço de construção de um sistema nacional de defesa próprio.

"É parte da sujeição estratégica alemã, especificamente aos Estados Unidos."

Qual o posicionamento da Alemanha no conflito na Ucrânia?

Hugo Albuquerque afirma que a decisão do governo de retirar subsídios do setor agrícola, em um primeiro momento, poupará recursos do governo e colocará mais trabalhadores no mercado, aliviando os custos da indústria, que aumentaram pela variável energética.

"Tudo isso, no entanto, é explicado ao público como 'uma medida para combater as mudanças climáticas', o que é, obviamente, uma mentira. Eu não creio que isso implique em crise alimentar imediata, porém piora as condições sociais em geral. É um jeito bizarro de socializar os custos do conflito na Ucrânia, que não é da Alemanha, mas lhe foi imposto em nome da imposição dos Estados Unidos, inclusive se legitimando por uma cobrança de uma dívida moral por 'prover a segurança nacional alemã'."

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"Ele afirma que o governo alemão recebe ordens dos EUA, que acabam menos indecorosas "por causa da propaganda russofóbica do Ocidente, da supremacia ideológica e cultural americana sobre a Alemanha", explica Albuquerque, acrescentando que a Europa também tem um papel importante nesse contexto.

"Mas o incômodo social emerge com a piora das condições de vida. Ninguém sabe ao certo quais fatores específicos condicionam a obediência alemã [aos EUA], mas certamente qualquer governo dos partidos do establishment alemão faria o mesmo."

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A soma de todos esses fatores pode agravar a situação atual de Scholz, cujo governo é reprovado por 82% dos alemães. Outros 59% desejam eleições antecipadas, segundo pesquisas recentes. Para Albuquerque, a falta de carisma do chanceler piora sua situação, mas é improvável que ocorram eleições antecipadas.
"Porque os verdes e liberais que compõem a coalizão de governo não têm interesse nisso. Possivelmente eles seriam punidos nas urnas também. Então a 'coalizão semáforo' [por causa das cores dos três partidos integrantes] pensa em se segurar no poder e virar o jogo, embora ela não tenha exatamente um plano a esse respeito. Se os liberais e os verdes estiverem populares, eles possivelmente empurrariam Scholz para o abismo."
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Ele afirma que "o problema alemão são os efeitos socioeconômicos da guerra", mas que não existe um plano para mudar a situação atual.
"A Alemanha, no fundo, talvez esteja só fazendo o que pode em relação aos Estados Unidos, torcendo para que o governo americano mude sua política para a Rússia ou que o conflito acabe. A situação mais óbvia, da Alemanha reatando com a Rússia, eu creio que não acontecerá. Isso não é um problema de governo, mas de regime político. Sem um governo de um partido de fora do establishment disposto a mudar o regime, nada acontecerá a esse respeito", explica Albuquerque, acrescentando que "o cenário mais possível na Alemanha na próxima eleição é um retorno dos democratas cristãos ao poder".

Como está a crise na Alemanha?

Em entrevista à Sputnik Brasil, Michel Alaby, diretor regional em São Paulo da Câmara de Comércio, Indústria e Serviços do Brasil (Cisbra), destaca que a retirada de subsídios do setor agrícola alemão abre uma janela de oportunidade para as exportações brasileiras.
"É lógico que [os alemães] vão depender mais de produtores estrangeiros, principalmente do Leste Europeu, da própria Rússia, que é grande produtora de grãos, e também do Brasil e do Mercosul, apesar de o acordo Mercosul-UE não ter sido fechado. Eles dependem muito dos produtos agrícolas, e a Rússia, por exemplo, é grande produtora de trigo, e o trigo é uma matéria-prima muito importante na alimentação. Em relação também à própria pecuária suína, há alguns países que podem fornecer produtos, como é o caso do Brasil", explica.
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Ele acrescenta que apesar de o principal destino dos produtos brasileiros ser a China, "o Brasil, evidentemente, pode se beneficiar dessa situação e lucrar mais ao comercializar com a Europa".
"Há um espaço para crescimento dessas exportações brasileiras, principalmente na área de milho, soja e na pecuária. Na realidade, o que está acontecendo é que os agricultores estão reclamando muito do governo alemão e de outros governos europeus, porque os europeus estão investindo muito na guerra da Ucrânia e estão disponibilizando armamento e dinheiro para a Ucrânia", afirma Alaby.
Ele argumenta que a Europa tem interesse na Ucrânia, principalmente em relação à OTAN, mas ressalta que esse "é um problema político, muito mais do que econômico, justamente para combater a Rússia".
"Mas a Rússia, apesar de todas as restrições que ela encontra, existem países que negociam livremente com a Rússia ou que negociam indiretamente via China, via Irã ou via países árabes, escoando produtos para os europeus e para outros mercados."
Ele acrescenta que a situação atual "demonstra a fraqueza dos líderes mundiais" e uma mudança na geopolítica internacional.
"A diplomacia está falhando enormemente em eliminar todas essas guerras existentes no mundo. A própria ONU [Organização das Nações Unidas] já não tem mais a força que tinha antigamente, e isso demonstra uma fraqueza dos líderes mundiais. A própria OMC [Organização Mundial do Comércio], que perdeu sua legitimidade em função do tribunal arbitral [Órgão de Solução de Controvérsias, que medeia disputas entre países no âmbito da organização, para o qual] […] os Estados Unidos não nomearam os juízes, está perdendo o seu valor também no comércio internacional", diz o especialista.

Qual é a relação comercial entre Brasil e Alemanha?

Para Vinícius Guilherme Rodrigues Vieira, professor de economia e relações internacionais na Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), a retirada dos subsídios do setor agrícola alemão por si só não garante vantagem aos produtores de alimentos do Brasil. Ele aponta que isso vai depender do tipo de produto, já que muitos alimentos produzidos por países da União Europeia têm cotas e outras barreiras técnicas que limitam a entrada de produtos estrangeiros.

"A princípio, o Brasil não compete ali com produtos feitos na própria Alemanha, nós temos alguma coisa de carne de porco, mas carne de porco tem tantas regulações… Teremos que ver as especificidades técnicas para ver se o Brasil teria ali força para entrar diretamente, então não é necessariamente algo automático. Facilitaria muito, porém, se nós tivéssemos assinado o acordo Mercosul-UE."

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Vieira afirma que a medida não deve acarretar em uma crise alimentar, já que o mercado europeu é capaz de suprir as necessidades do país. Porém ele alerta que esse risco se daria "em função de forças externas às decisões tomadas pela Alemanha, como […] a própria continuidade de conflitos, as tensões no mar Vermelho, que têm impactado o comércio global, e as mudanças climáticas".

Qual é a força militar da Alemanha?

Para Vieira, a Alemanha vem buscando um maior protagonismo militar desde antes da eclosão do conflito ucraniano, "desde que ela se consolidou como a grande casa de força da economia europeia".
"Somado a isso, hoje a indústria [alemã] está em um relativo declínio. No campo dos automóveis, a China saiu à frente na questão dos veículos elétricos, os EUA também, com a Tesla, as montadoras alemãs estão atrasadas em relação a isso e a economia alemã como um todo tem um problema muito grave de inovação."
Ele acrescenta que a tentativa alemã de adentrar o nicho militar, no qual o país sempre teve limitações devido a questões do pós-Segunda Guerra Mundial, é reforçada pelo fato de outros setores industriais alemães estarem em declínio.
"Como se sabe, o setor industrial militar ajuda muito a movimentar a economia doméstica. Basta ver o que está acontecendo nos EUA, um grande exportador [de armas] hoje ali para a Ucrânia, e já também para Israel. Isso tem movimentado a economia americana mais do que o esperado, então o mesmo talvez aconteça com a Alemanha."
Na avaliação de Vieira, os EUA inicialmente não pensavam em se envolver no conflito ucraniano através da OTAN, mas à medida que isso se tornou inevitável, Washington acabou "unindo o útil ao agradável", ao aproveitar a situação para alimentar sua indústria de armas.
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Ele afirma que apesar da fadiga da população europeia em relação ao envolvimento do continente no conflito, "agora a saída da guerra será mais complicada, não só para a Alemanha, mas para os Estados Unidos, por conta dessa pressão do setor militar".
"O governo alemão parece estar ali sob pressão da população, que não quer mais o envolvimento com a guerra, não vê utilidade na guerra, não vê por que a Alemanha, e a OTAN como um todo, deva continuar na guerra, ainda que indiretamente. E, por outro lado, o setor industrial militar, que vem se beneficiando da guerra, vai pressionar pela continuidade da guerra. Isso é clássico, é uma questão de grupos de interesse."

Qual o partido de direita na Alemanha?

Questionado sobre a possibilidade de haver eleições antecipadas na Alemanha, por conta da erosão da popularidade de Scholz, Vieira afirma ser improvável por conta do atual cenário alemão, que ele classifica como "muito perigoso, principalmente por conta da ascensão da extrema-direita, o [partido] Alternative für Deutschland [Alternativa para a Alemanha], a AfD".
"Não haverá eleições antecipadas simplesmente por conta disso, porque se houver, a Alternative für Deutschland vai ter boas chances de, se não liderar um governo, ser convidado para uma coalizão."
Vieira conclui afirmando que tentativas de excluir a AfD do jogo político podem ter resultado oposto, acabando por fortalecer o partido.

"O cenário atual, com crise econômica, geralmente gera crise política, mas o establishment alemão vai resistir até o fim para realizar novas eleições, pelo menos enquanto a Alternative für Deutschland não for banida", conclui Vieira.

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