Panorama internacional

Milei tirou a seleção da Argentina da Copa do Mundo? Entenda a polêmica

Em entrevista à Sputnik Brasil, especialista explica se a medida presente no decretaço de Milei, que transforma clubes esportivos em sociedades anônimas, pode fazer com que a FIFA e a Conmebol proíbam a participação argentina na Copa de 2026.
Sputnik
A notícia de que o presidente argentino, Javier Milei, vai retirar a seleção da Argentina da Copa do Mundo de 2026, no Canadá, no México e nos Estados Unidos, gerou forte repercussão no país vizinho.
A controvérsia veio à tona em virtude do Decreto de Necessidade Urgente (DNU), o rol de medidas apresentado por Milei, conhecido como "decretaço". Entre outras coisas, o documento institui que clubes esportivos argentinos passarão a operar como Sociedades Anônimas Desportivas (SADs).
O objetivo é fazer algo similar ao que foi feito no Brasil em 2021, com a Lei 14.193, que fez com que clubes deixassem de funcionar como associações esportivas sem fins lucrativos para se tornarem Sociedades Anônimas do Futebol (SAFs). Com isso, os clubes passaram a operar como empresas, com abertura de capital para investidores. Entre os benefícios da mudança está a possibilidade de clubes endividados pedirem recuperação judicial.
Atualmente oito clubes brasileiros são SAFs: América Mineiro, Bahia, Botafogo, Coritiba, Cruzeiro, Cuiabá, Vasco da Gama e Red Bull Bragantino — esse último com uma modalidade de clube-empresa, sendo patrocinado pela bebida que dá nome ao time. Ademais, o Fortaleza também criou uma modalidade de SAF na qual o clube continua existindo como associação esportiva.
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No caso do Brasil, a mudança para SAF é facultativa, podendo o clube decidir como operar.
E é nesse ponto que reside o cerne da polêmica argentina, uma vez que o decretaço de Milei não deixa claro se a mudança para SAD será facultativa ou obrigatória. Caso seja obrigatória, a Federação Internacional de Futebol (FIFA) e a Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) podem barrar a Argentina de participar da próxima Copa do Mundo, já que seus estatutos estipulam severas penalidades em casos de interferência de governos em assuntos relativos às equipes que as compõem.
A Confederação Desportiva Argentina (CAD, na sigla em espanhol) apresentou, na última segunda-feira (8), um recurso para suspender de maneira cautelar as medidas referentes ao assunto e alertou que se o plano de Milei seguir adiante, a participação da Argentina no Mundial está ameaçada.
A Sputnik Brasil conversou com Rafael Teixeira Ramos, consultor jurídico desportivo, titular da cadeira número 48 da Academia Nacional de Direito Desportivo, doutorando e cientista do direito financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT — Portugal), para entender se a Argentina de fato corre o risco de ficar fora da Copa do Mundo por conta do decretaço de Milei.
Para Ramos, todo o imbróglio se resume ao fato de a medida ser ou não facultativa. Ele afirma que se a medida for facultativa, "não viola de forma alguma o estatuto da FIFA ou a própria Constituição argentina".
"Como aconteceu no Brasil. Só que no Brasil foi mais democrático porque foi via projeto de lei, no Parlamento, e é uma lei. Nós temos a Lei da Sociedade Anônima do Futebol, como é chamada aqui", explica o consultor jurídico.
Ele acrescenta que o fato de um time de futebol se tornar ou não uma SAF não afeta o desempenho do clube e cita o Vasco da Gama, o Bahia, o Cruzeiro e o Fortaleza.

"Nós temos já, hoje, quatro grandes clubes de peso que se tornaram Sociedade Anônima do Futebol. Pode-se dizer que em todos eles, pelos resultados imediatos, não é ruim [a mudança para SAF]."

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Ele acrescenta que no Brasil, quando o projeto de lei para a criação das SAFs entrou em discussão, também houve rejeição.
"Na época que o projeto de lei estava em tramitação, não foi uma coisa tranquila, não. Houve dirigentes de clubes e advogados de clubes que se insurgiram, sim, mas não de maneira tão forte como na Argentina, porque tudo na Argentina tem uma intensidade maior do que no Brasil, mas aqui criticou-se muito, sim."
Ramos afirma que nunca se posicionou contra a lei, por achar interessante o fato de não ser algo impositivo.
"Da forma como a nossa lei foi feita, em relação à questão democrática e republicana, eu sempre achei interessante, porque não é uma obrigatoriedade dos clubes se tornarem SAFs. Bahia, Botafogo, Vasco, todos eles se tornaram SAFs porque estavam com momentos financeiros muito ruins e optaram por transformar o seu clube, criar a SAF", explica Ramos.

"Ninguém chegou obrigando [os clubes], o governo não obrigou […]. Em relação à Argentina, um decreto é mais específico, não é um Parlamento que faz um decreto. Quem faz um decreto é um presidente, é o chefe do Executivo. Por isso você sempre fica mais reticente quando vêm algumas coisas fortes diretamente via decreto", complementa.

Ele afirma que outro elemento importante a ser levado em conta é "saber qual vai ser o teor desse decreto, se vai obrigar os grandes clubes argentinos a se tornarem SAFs ou se vai ser dada opção a eles".
"Se for dada opção, acho que não viola a Constituição argentina, não vai violar os estatutos da FIFA e não haverá maiores pressões", explica Ramos.
Entretanto, ele alerta que se não for dada opção aos clubes, a FIFA e a CONMEBOL poderão, de fato, barrar a participação argentina na Copa. "A FIFA vai pressionar para que isso não aconteça por causa da autonomia das entidades desportivas, que inclui os clubes."
Ele afirma que apesar da forte polêmica gerada no país vizinho, o que resta aos argentinos é esperar para entender o teor das medidas referentes às SADs presentes no decretaço.

"No máximo acredito que o que pode acontecer, por pressão da Conmebol e da FIFA, se elas verificarem que o texto do decreto não obriga [os clubes a se tornarem SADs], mas que há uma pressão política interna ditatorial, […] [é que] elas podem enviar uma delegação para ir às federações [sedes dos clubes], para dar uma olhada e ver o que está acontecendo. Se eles acharem que é uma questão ditatorial, aí, mesmo que seja facultativo [a mudança], eles podem fazer a pressão. E a forma de fazer a pressão é ameaçando não aceitar a legitimidade da inscrição para as competições", conclui o especialista.

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