Panorama internacional

Brasil cede a lobby pentecostal e adota postura tímida sobre conflito em Gaza, diz analista

Brasil fica para trás de seu parceiro do BRICS, África do Sul, ao não adotar medidas concretas para interromper as ações militares de Israel na Faixa de Gaza, acredita analista. A atuação de grupos de interesses religiosos favoráveis a Israel no Brasil aumenta o custo doméstico de uma posição mais incisiva sobre o conflito em Gaza.
Sputnik
Nesta quinta-feira (11), a Corte Internacional de Justiça, sediada em Haia, apreciará a denúncia feita pela África do Sul contra Israel pelo crime de genocídio contra a população palestina na Faixa de Gaza. A denúncia pede que a corte ordene a interrupção das atividades militares de Israel no território.
Principal órgão jurídico da ONU, a corte emite decisões vinculantes aos seus signatários, como Israel e África do Sul. Além disso, ambos os países assinaram a Convenção sobre Genocídio de 1948, que prevê a adoção de medidas concretas para preveni-lo.
Nesta quarta-feira (10), o Brasil se juntou a países como Turquia, Colômbia e Bolívia e manifestou apoio à denúncia feita pela África do Sul contra Israel na Corte Internacional de Justiça.
"À luz das flagrantes violações ao direito internacional humanitário, o presidente manifestou seu apoio à iniciativa da África do Sul de acionar a Corte Internacional de Justiça para que determine que Israel cesse imediatamente todos os atos e medidas que possam constituir genocídio ou crimes relacionados nos termos da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio", afirmou o governo brasileiro.
Apesar do apoio, a posição brasileira em relação ao conflito em Gaza tem sido menos proativa do que a de outros países do BRICS, como a África do Sul.
"A África do Sul sempre foi um aliado estratégico da Palestina, que contou inclusive com o apoio pessoal de Nelson Mandela", disse o jornalista, cientista político e professor de Relações Internacionais, Bruno Lima Rocha, à Sputnik Brasil. "A União Africana também tem papel importante, associando a luta anticolonial do continente à causa palestina."
O especialista gostaria que o Brasil fosse mais incisivo em relação aos acontecimentos em Gaza, mas cita obstáculos domésticos que favorecem a adoção de postura cautelosa.
"O lobby pentecostal garante certo poder de veto de Israel na América Latina. Temos um 'cinturão bíblico' nos países da região, inclusive no Brasil", explicou Lima Rocha. "Por isso, uma posição mais ativa sobre o conflito em Gaza teria um custo doméstico alto."
Para o pesquisador em Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal Fluminense (UFF), Jonuel Gonçalves, o grau de engajamento do Brasil no conflito israelo-palestino está de acordo com os seus recursos de poder.
Juízes do Tribunal Internacional de Justiça presidem a abertura das audiências da denúncia sul-africana de Israel por atos de genocídio na Faixa de Gaza. Haia, Países Baixos, em 11 de janeiro de 2024
"Nesse caso, o Brasil está jogando melhor do que em outras situações de conflito. Não se coloca como quem quer resolver o conflito, mas como um país que reage muito bem ao desenvolvimento dos acontecimentos", disse Gonçalves à Sputnik Brasil. "Tem sido eficiente na evacuação de nacionais ou binacionais da área, criticado a reação de Israel como totalmente desproporcional ao que aconteceu em 7 de outubro e pedindo a adesão às regras internacionais."

Emigração em massa

Essa não é a primeira vez que o governo brasileiro se vê compelido a expressar posição sobre o conflito de Gaza em 2024.
Na última semana, o Itamaraty manifestou oposição a declarações de autoridades do primeiro escalão do governo israelense, como o ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, e o ministro da Segurança, Itamar Bem-Gvir, sugerindo a emigração em massa de palestinos da Faixa de Gaza para países vizinhos a Israel. Em entrevista ao canal local Channel 12, Smotrich disse que o governo quer "encontrar países dispostos a recebê-los".
O Departamento de Estado dos EUA criticou as declarações, classificando-as de "retórica inflamada e irresponsável". Para Washington, a Faixa de Gaza deve permanecer sob controle palestino, ainda que sem a presença do Hamas.
O primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, no centro, aparece com soldados no norte da Faixa de Gaza, em 25 de dezembro de 2023
Os ministros israelenses não se sentiram acuados e reiteraram suas declarações favoráveis ao que chamaram de "emigração voluntária", reportou o The Times of Israel.
Para Smotrich, a Faixa de Gaza é um território no qual "dois milhões de pessoas acordam todos os dias com a aspiração de destruir o Estado de Israel, massacrar, violar e assassinar judeus". Já seu colega Ben-Gvir disse "admirar os EUA", mas que seu país "não é mais uma estrela na bandeira americana".
Para o pesquisador da Universidade Federal Fluminense (UFF), Jonuel Gonçalves, as declarações dos membros do governo Netanyahu têm como objetivo testar a reação da comunidade internacional.
"Acredito que os ministros israelenses falaram isso como um balão de ensaio, para ver qual seria a repercussão internacional", disse Gonçalves. "Mas sabemos que existem governos que levam esse tipo de teste bastante longe, por isso o Brasil se posicionou de forma preventiva."
Para Gonçalves, o Brasil poderia ser vislumbrado como um país receptor de refugiados palestinos, portanto deixa claro sua oposição à emigração em massa da Faixa de Gaza.
Mulher palestina busca abrigo em Khan Yunis, cidade destruída parcialmente pelos bombardeios israelenses, em 2 de dezembro de 2023
"Acredito que nenhum país sozinho receberia um milhão de pessoas de um dia para outro. O problema humanitário seria permanente, o que já aconteceu em 1947, quando os palestinos tiveram que deixar a zona atribuída para a criação do Estado de Israel", considerou o pesquisador da UFF.
Apesar de ser uma hipótese remota, o país mais visado para eventualmente receber palestinos retirados de maneira forçosa de Gaza seria o Egito, considerou o professor Bruno Lima Rocha.

"A única chance factível – improvável, mas não descartável – seria se o governo de Abdel Fattah al-Sisi no Egito selasse um acordo que garantisse recursos financeiros e perdão da dívida externa egípcia em troca da recepção dos palestinos", disse Rocha. "Mas isso viria a um custo político altíssimo e colocaria em risco a já deteriorada estabilidade doméstica egípcia."

Além disso, o estabelecimento de um campo de refugiados de grande proporção na península do Sinai geraria um problema de segurança de longo prazo, considerou o especialista.
Palestinos passam uma bandeira egípcia na lateral de uma rua em Beit Lahiya, norte da Faixa de Gaza, em 25 de janeiro de 2022.
"Isso implicaria um acordo securitário no qual a península do Sinai, que já é uma região sob acordos de ingerência de Israel e EUA, seria de fato um território não egípcio", disse Rocha. "Instalar uma população deslocada de maneira forçosa, em imenso campo de refugiados construído às pressas, geraria uma verdadeira fábrica de combatentes. Essa hipótese é pouco provável, já que o Egito teria que de fato ceder parte de seu território."
O pesquisador da UFF Jonuel Gonçalves concorda que o Egito dificilmente selaria um acordo com Israel para receber refugiados da Faixa de Gaza.
"Apesar de o Egito estar com graves problemas econômicos e à beira de um default de parte da sua dívida externa, ele prefere assumir o papel de mediador", explicou Gonçalves. "O Egito quer reduzir o papel do Hamas, que é seu adversário, mas sem dar carta branca para Israel, insistindo que planos para uma ocupação permanente de Gaza sejam abandonados."
Mulheres palestinas choram onde se acredita que um parente esteja preso nos escombros após o bombardeio israelense em Rafah, no sul da Faixa de Gaza, em 21 de dezembro de 2023
A incursão militar israelense na Faixa de Gaza já dura mais de dois meses e vitimou cerca de 23 mil pessoas, 70% delas mulheres e crianças, informou a nota do governo brasileiro publicada nesta quarta-feira (10). Segundo Brasília, mais de 80% da população de Gaza foi objeto de transferência forçada, o que caracteriza punição coletiva.
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