Panorama internacional

Situação da Transnístria reflete repressão a populações de língua russa na Europa, notam analistas

O governo da autoproclamada república da Transnístria, de língua predominante russa, solicitou a ajuda de Moscou contra o estrangulamento econômico e a repressão promovidos pela Moldávia. Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam os impactos do pedido em uma nova região do Leste Europeu, já afetado pelo conflito ucraniano.
Sputnik
Na semana passada, o governo independente da autoproclamada república da Transnístria, oficialmente chamada de República Moldava Peridniestriana, solicitou ajuda a Moscou para defender sua integridade territorial e econômica.
No pedido, o governo da Transnístria argumenta que a proteção russa se faz necessária diante do aumento da pressão do governo moldavo contra a região, promovendo o estrangulamento econômico e impedindo a entrada de produtos essenciais, na tentativa de transformar o local em um gueto. Em discurso no Parlamento, o presidente da Transnístria, Vadim Krasnoselsky, acusou a Moldávia de promover um genocídio no enclave.
O Ministério das Relações Exteriores da Rússia respondeu que a proteção dos interesses dos residentes da Transnístria é uma das prioridades de Moscou, e disse que o governo russo analisa com atenção a solicitação de ajuda.
Em entrevista dada no dia 1º, à margem do Fórum Diplomático de Antalya, na Turquia, o chanceler russo, Sergei Lavrov, comentou o assunto. Ele disse que os questionamentos sobre os motivos do pedido de ajuda da Transnístria a Moscou devem ser dirigidos ao governo de Chisinau (capital da Moldávia), que afirmou estar seguindo os passos do regime de Kiev.

"A questão deve ser dirigida àqueles que serviram de motivo para tal declaração do parlamento peridnestroviano. Em primeiro lugar, o regime que se instalou em Chisinau está simplesmente seguindo os passos do regime de Kiev, abolindo tudo o que é russo, discriminando a língua russa em todas as esferas e, juntamente com os ucranianos, impondo uma séria pressão econômica sobre a Transnístria", disse o chanceler.

Ele acrescentou ainda que a liderança romena em Chisinau deve cessar as tentativas de eliminar as negociações no formato 5+2, que inclui todas as partes envolvidas no imbróglio: a república da Transnístria, a Moldávia, a Rússia, a Ucrânia e a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), juntamente com a União Europeia e os Estados Unidos, atuam como observadores.
A situação é vista como potencial fator de agravamento de tensão em uma região do Leste Europeu já afetada pelo conflito ucraniano. Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam os possíveis impactos geopolíticos gerados pelo pedido de proteção do governo da Transnístria à Rússia.

O que está acontecendo na Transnístria?

Localizada na Moldávia, a república da Transnístria ocupa uma estreita faixa de terra, de 4.163 quilômetros quadrados, localizada entre o rio Dniestre e a fronteira com a Ucrânia. Ela tem uma população de 465 mil habitantes, composta majoritariamente (60%) por russos e ucranianos que convivem pacificamente. A língua predominante é o russo, mas também são falados os idiomas ucraniano e romeno.
O enclave tenta se separar da Moldávia desde o fim da União Soviética (URSS), e as tensões aumentaram em 1989, quando uma lei tornou o moldavo o idioma oficial da região. Em 1990, a região declarou independência, separando-se da Moldávia, o que desencadeou um conflito armado.
Forças paramilitares tomaram o controle do enclave, assumindo o comando das instituições em 1991. Em julho de 1992, com a situação ainda não controlada, um acordo de cessar-fogo entre as partes foi assinado, trazendo entre seus pontos a criação de uma zona de segurança desmilitarizada e a instalação de tropas russas em uma missão de paz na região.
Com isso, a república da Transnístria saiu do domínio da Moldávia, e atualmente tem sua própria Constituição, sua própria capital, Tiraspol, seu parlamento, bandeira, hino e moeda, o rublo transnístrio. Porém, a independência até hoje não foi reconhecida pela Moldávia nem pela Organização das Nações Unidas (ONU).

Quais os impactos do pedido de ajuda à Rússia?

O historiador Antonio Braga afirma considerar a Transnístria "como praticamente um enclave russo, porque há ali uma população majoritariamente russa, pró-Rússia, embora também tenha uma população moldava e uma população de origem romena e ucraniana, que sempre conviveram em paz". Na avaliação do especialista, a situação escalou com o avanço do fascismo na Ucrânia.

"Existem tropas russas, desde a declaração de independência, guardando e protegendo o território da Transnístria. E agora, com esse cenário, desde o momento em que tem ali o crescimento do fascismo na Ucrânia, com a deposição de [Víktor] Yanukovych, a gente já sabia que o passo adiante dos fascistas de Kiev seria também marchar em direção à Transnístria para varrer o passado russo, o passado soviético daquele local. No início do conflito ali, você tem a Transnístria acompanhando a situação, observando essa situação com cuidado", explica Braga.

Braga acrescenta que a situação pode se agravar, caso a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) decida enviar "não apenas armas, mas tropas para dentro da Ucrânia", o que poderia abrir um novo front de batalha, extravasando o conflito ucraniano para além das fronteiras da Ucrânia. Segundo ele, "isso colocaria a Transnístria na ordem do dia", uma vez que a região tem uma população majoritariamente pró-Rússia, que se tornaria um alvo para a aliança, assim como ocorre atualmente na Ucrânia.

"No momento que eu tenho a escalada do conflito da Ucrânia, no momento em que eu tenho a OTAN, se, de fato, quiser escalar o conflito, enviando não apenas armas, mas tropas para dentro da Ucrânia, aí a gente pode ter outro front de combate", explica o especialista.

Para João Cláudio Pitillo, professor de história e pesquisador do Núcleo de Estudos das Américas (Nucleas) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), a Transnístria está aproveitando uma conjuntura regional favorável por conta dos avanços da Rússia no conflito contra a Ucrânia para colocar nos holofotes uma antiga demanda da região: o reconhecimento da independência.

"O fato de a economia russa estar indo bem, as sanções não estarem fazendo efeito, as articulações da Rússia no BRICS, isso tem sido extremamente positivo para a Rússia. E a Transnístria, obviamente, está observando isso, está aproveitando esse momento para fazer pressão. E a outra conjuntura é a conjuntura local. A situação da Moldávia sempre foi delicada. A Moldávia vive uma crise eterna com o fim da União Soviética, e a Transnístria é mais organizada nesse sentido. As estruturas sociais da Transnístria permitem que ela ouse, mesmo com uma independência que não é reconhecida, mas de fato existe desde 1990. Então acredito que a Transnístria está aproveitando esse momento para lançar esse pedido à Rússia, mas com o intuito também de ser observada pelo mundo todo."

Ele acrescenta que o pedido de ajuda, neste momento atual da geopolítica global, tem um desdobramento interessante, porque "a Rússia, nos vários blocos políticos e econômicos que hoje participa, pode levar esse tema e começar a lutar pelo reconhecimento da Transnístria" junto à ONU, ao BRICS, à China e a países do Leste Europeu.
"Porque essa questão estava adormecida e talvez ficasse assim, enquanto havia toda uma conjuntura territorial favorável. Mas com o conflito na Ucrânia e toda essa animosidade contra a Rússia, com certeza, a Transnístria deve estar sofrendo. A Moldávia há muito tempo foi capturada e tratada como um quintal pela OTAN. E a Transnístria está sentindo o efeito disso. Então eu acredito que esse pedido de socorro à Rússia é no intuito de que a Rússia passe a ser uma portadora oficial dessa reclamação, dessa demanda por independência."

O Ocidente pode usar a disputa para desestabilizar a Rússia?

Questionado se a Transnístria pode ser uma nova Ucrânia, ou seja, mais uma peça usada pelo Ocidente nas tentativas de desestabilizar a Rússia, Pitillo afirma descartar essa hipótese. Ele considera que "dificilmente ocorrerá uma ação bélica por parte de Moscou em favor da Transnístria".

"Eu acho isso pouco provável, a não ser que a situação escalasse internamente, um cenário de dura repressão contra a Transnístria. Obviamente [isso] iria obrigar os russos a agirem, como já agiram uma vez [na Ucrânia]. Mas, hoje, eu acho que a situação vai ficar no campo político, diplomático, e acredito que a Rússia vai fazer uma ofensiva diplomática maior do que fez até hoje [na Transnístria]. Porque hoje há um pedido de socorro, de fato", diz Pitillo.

Ele ressalta que há possibilidade de o caso ser explorado pela OTAN, "mas apenas no campo político, no campo da retórica".
"Acho pouco provável que a OTAN mobilize tropas e queira fazer da Transnístria um campo de batalha, isso já acontece na Ucrânia. Acho que na Transnístria não chegará a tanto, pelo menos não em médio e curto prazo."
Pitillo lembra ainda que "o destino da Moldávia, de ter se tornado pró-Europa e acocorada à OTAN, foi rechaçado pela Transnístria" décadas atrás, e diz considerar que o conceito de autodeterminação dos povos poderia ser aplicado à Transnístria para que a independência fosse reconhecida pela ONU.
"A população da Transnístria, o governo, conseguiu estabelecer um status social e político muito vigoroso. Isso não é um rompante. Isso é uma luta que já tem décadas, então seria muito interessante que a ONU observasse", explica Pitillo.
Porém, ele sublinha que a situação ameaça aumentar a repressão a populações de língua russa no Leste Europeu.

"Essas populações vão ser perseguidas, estigmatizadas. Essas ex-repúblicas soviéticas ficaram numa situação muito difícil com o fim da União Soviética. O neoliberalismo chegou nessa região de maneira muito cruel. Então esses desníveis sociais tendem a aflorar, e a questão da solidariedade à Rússia tende a aumentar, principalmente pela conjuntura de Sul Global, porque a questão não é mais a Rússia. A Rússia, hoje, participa de um projeto muito maior, que questiona essa governança global, questiona o imperialismo. Então há a possibilidade de 'novas transnístrias' surgirem na região é muito grande", conclui o especialista.

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