Despolitização × censura: por que o governo Lula quer desestimular as candidaturas dos militares?
Um dos reflexos da invasão das sedes dos Três Poderes em 2023 e do suposto envolvimento de membros das Forças Armadas, o governo apresentou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 42/2023 para desestimular candidaturas de militares nas eleições. Articulada pelo ministro José Mucio, a oposição já entrou em campo para ampliar debates sobre o tema.
SputnikCom a saída da
ex-presidente Dilma Rousseff (PT) em 2016 após o impeachment, o governo Michel Temer (MDB) abriu as portas para um fenômeno que não ocorria no Brasil desde o fim da ditadura: a participação recorde de
militares em cargos de alto escalão do Executivo federal. Diante da
eleição de Jair Bolsonaro (PL) em 2018, a presença se intensificou ainda mais e também estimulou o crescimento das candidaturas de
membros ligados às forças de segurança.
Um levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), com base nos dados do
Tribunal Superior Eleitoral (TSE), revelou que no pleito de 2022 houve recorde de candidatos que se declararam
policiais, bombeiros ou militares das Forças Armadas. Ao todo, foram quase 1,9 mil pessoas, um crescimento de 28% em comparação com o último pleito nacional. Em estados como o Amazonas e o Distrito Federal, as candidaturas militares chegaram a representar
11,3% e 10,1%, respectivamente, dos nomes registrados para a eleição.
Diante da derrota de Jair Bolsonaro, que tem entre o
setor uma das principais bases de apoio, e o questionamento do resultado eleitoral que sacramentou a vitória do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva, começaram os protestos nas portas dos quartéis espalhados por todo o Brasil. O resultado foi a tentativa de invasão das
sedes dos Três Poderes da República, em 8 de janeiro do ano passado, com investigações inclusive da
participação de militares, tanto da ativa quanto da reserva. Tudo isso levou o novo governo a apresentar, também em 2023, a PEC 42/2023, que
desestimula a participação de membros das Forças Armadas nas eleições.
No último novembro, o texto foi aprovado pela
Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, sob a relatoria do senador Jorge Kajuru (PSB-GO). Com isso, seguiu para
discussão em plenário. Entre as principais mudanças, o militar federal que se candidatar a um cargo eletivo passa a ser transferido automaticamente para a reserva não remunerada, ou seja, deixa de receber salário. A exceção só é válida para quem
possui mais de 35 anos de serviço na Marinha, no Exército, na Aeronáutica ou na
Força Aérea Brasileira (FAB).
De autoria do
senador Jaques Wagner (PT-BA), líder do governo na Casa, o objetivo da proposta é justamente evitar a vinculação de membros das forças às atividades político-partidárias e
garantir a neutralidade política das instituições. Mas, nas últimas semanas, diante da rápida tramitação do projeto, a oposição liderada pelo senador e ex-vice-presidente Hamilton Mourão (Republicanos-RS) apresentou
29 assinaturas para que o texto fosse mais debatido no Parlamento antes de ser colocado para votação. O Senado conta com 81 parlamentares.
A medida, inclusive, tem pressionado o ministro da Defesa, José Mucio, a iniciar concessões, como permitir que militares que perderam as eleições possam voltar a seus postos.
No último mês, Mourão chegou a classificar que o texto coloca os membros das Forças Armadas como cidadãos de "segunda categoria", ao impedir a participação no processo eleitoral.
"Buscar cercear o direito do militar de concorrer a um cargo eletivo ao obrigar o militar a passar para a reserva não remunerada […]. O número de militares da ativa que se candidata é muito pequeno em relação ao efetivo",
defendeu à época, ao acrescentar que no último pleito foram apenas 32 militares do Exército, do
efetivo de mais de 150 mil, que disputaram algum cargo.
Além disso, o senador ainda pontua que a PEC fere "de morte" o
artigo 5º da Constituição, que prevê o direito de qualquer pessoa em exercer sua cidadania de maneira ampla, inclusive podendo votar e ser votado. Um parecer do jurista Ives Gandra, que foi presidente do
Tribunal Superior do Trabalho (TST) entre 2016 e 2018, apresentado pelos
opositores à proposta no Senado, foi contrário ao texto por "macular drasticamente o direito maior que os cidadãos têm numa real democracia".
Politização das Forças Armadas
Caso a PEC seja aprovada em dois turnos com, no
mínimo, 49 votos dos senadores, o texto segue para apreciação na
Câmara Federal, onde o governo deve ter ainda mais resistência diante da força da bancada da bala, que conta com
44 deputados ou 9% do total dos parlamentares — número maior do que a maioria dos partidos políticos.
O deputado federal Domingos Sávio (PL-MG) defendeu em entrevista à Sputnik Brasil que o direito à candidatura é um "pressuposto básico de exercício da cidadania", e qualquer discriminação é inaceitável em uma democracia.
"Não podemos discriminar ninguém em função da atividade lícita que exerce. No caso dos militares, já existe previsão legal de se afastarem da função enquanto se candidatam ou durante o exercício da função pública. Portanto, na minha opinião, não existe nenhum conflito que justifique o impedimento. Quem é a favor da liberdade e da verdadeira democracia não pode e não deve votar a favor dessa proposta", afirmou.
O parlamentar da oposição alegou ainda que, para ele, o objetivo da proposta é excluir os militares da vida democrática do país.
"As Forças Armadas são independentes e apartidárias, e sua política é a defesa da pátria. Porém, nada impede que um militar tenha sua opinião política."
Já o deputado federal Rogério Correia (PT-MG) afirmou à Sputnik Brasil que as chances de o texto passar são grandes, já que as discussões devem ser iniciadas na Casa na mesma época que for finalizado o inquérito sobre o 8 de Janeiro pela Polícia Federal (PF).
"É uma proposta correta, vimos uma politização muito grande nas Forças Armadas, levada a cabo pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, o que acabou culminando na tentativa de golpe no país, que agora paga as consequências de uma investigação para ver isso […]. Há uma possibilidade boa de a proposta vingar, há um sentimento de que é preciso colocar um limite até […] na participação de militares nos governos civis. Não pode entrar no governo e depois voltar para as Forças Armadas, é um ciclo vicioso", argumenta.
Para o parlamentar mineiro, a PEC deve começar a tramitar em um momento de turbulência. "Acredito que a PF já terá terminado o inquérito em relação ao 8 de Janeiro e ficará mais claro qual foi a interferência dos militares na política, o que deve facilitar os trâmites por aqui. Vários militares devem ser indiciados, incluindo o próprio Bolsonaro e generais como Braga Netto e [Augusto] Heleno, além de vários outros da ativa dentro da estrutura que eles acompanhavam. Vai ficar mais claro para a sociedade", argumenta.
Além disso, Correia revelou que recentemente teve um encontro com o
procurador-geral da República, Paulo Gonet, sobre a questão. "Já tem processos [no órgão] bem avançados com as provas da CPMI [Comissão Parlamentar Mista de Inquérito] e da PF. Será mais um quadro claro da participação dos militares na tentativa de golpe", frisa.
Qual o papel das Forças Armadas na democracia?
A Constituição determina que as Forças Armadas existem para defender o país e para garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem. Paralelo a isso, a presença de militares em cargos de natureza civil da administração federal teve um crescimento de 70% durante a gestão Bolsonaro, apontou uma pesquisa de 2022 do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA). Jorge Gomes de Souza Chaloub, professor de ciência política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), destacou em declarações à Sputnik Brasil que essa situação trouxe uma série de desconfortos para a democracia brasileira.
"Porque não é simples concorrer politicamente com alguém que não está apenas disputando ideias com você, mas alguém que lidera tropas, que tem acesso a armas e que, mesmo que não faça uso ou diga que vai fazer uso de maneira explícita disso, evidentemente interfere na dinâmica política", pontua.
Além disso, o especialista entende que a PEC não impede um militar de deixar a carreira e se tornar político, mas traz uma regulamentação.
"O texto pensa em limitações, determina um caminho e uma institucionalização para isso [as candidaturas], já que de fato muitas das candidaturas e dos movimentos de lideranças militares no
governo Bolsonaro tiveram uma retórica explícita do golpismo. Mesmo antes [ao governo passado], teve comandantes militares ameaçando quase explicitamente o Supremo Tribunal Federal [STF], então chegou essa ideia de que é necessário regulamentar o trânsito do quartel para o Parlamento."
Desgaste e prejuízo à hierarquia
Conforme o professor da UFRJ, as entidades militares possuem funções que dialogam e atuam na política. No entanto, quando membros entram em questões partidárias e eleitorais há prejuízo às lógicas de organização interna como a hierarquia. Outro problema é o desgaste da imagem ao serem associadas a movimentos como o bolsonarismo, pontua Chaloub. Isso faz com que parte da população "deixe de olhar como uma força de Estado e enxergue como alguém a ser combatido".
"Não é possível prever como será o cenário de votação no Congresso, mas inegavelmente está sendo, justamente pela força da bancada da bala e dos militares, um percurso muito difícil de tramitação e deve ser desidratada em vários pontos. Talvez possa ter um grande acordo e o governo abrir mão de vários elementos que eram considerados importantes na formulação original dessa PEC", finaliza.