Nesta semana, o ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, Dmitry Kuleba, solicitou que os EUA enviem sistemas de defesa antiaérea Patriot para Kiev, mesmo que mediante pagamento. A disposição ucraniana em pagar pela ajuda militar poderá ser um marco em suas relações com Washington.
A possibilidade de receber sistemas de defesa antiaérea não por transferência direta, mas por arrendamento, ajudaria a desbloquear projeto de lei sobre ajuda à Ucrânia parado no Congresso dos EUA. A versão mais recente do projeto prevê a destinação de parte dos US$ 61 bilhões (cerca de R$ 319 bilhões) a Kiev sob a forma de empréstimos.
"Nos bastidores, dizemos para os nossos parceiros: 'Meus queridos, o que vocês quiserem. Se vocês querem que seja por arrendamento, que seja assim'", disse o ministro das Relações Exteriores da Ucrânia Kuleba para a emissora norte-americana TSN.
Nas últimas semanas, a chancelaria ucraniana empreende campanha para obter sete baterias do sistema de defesa antiaérea Patriot de seus aliados da OTAN, sem sucesso. Estimativas apontam que uma bateria MIM-104 Patriot, fabricada pela empresa norte-americana Raytheon, custaria cerca de US$ 1 bilhão (cerca de R$ 5 bilhões).
Soldado taiwanês fica na frente de um dos muitos sistemas de defesa aérea Patriot de Taiwan (foto de arquivo)
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"Você sinceramente acredita que todo o Exército dos EUA não tem uma bateria de Patriot que não esteja em serviço de combate e que não possa ser dada à Ucrânia? Eu não", questionou Kuleba em recente entrevista ao The Washington Post.
Apesar do ceticismo de Kuleba, os estoques de equipamentos e munições de países da OTAN estão, sim, em níveis críticos, disse o pesquisador em Rússia e ex-URSS no Núcleo de Avaliação da Conjuntura da Escola de Guerra Naval, Rafael Esteves Gomes.
"O conflito ucraniano tem demonstrado que os países da OTAN não estavam preparados para um embate de longa duração, sob o ponto de vista industrial", disse Gomes à Sputnik Brasil. "Os estoques de munição e equipamento militar dos EUA reservados para venda ou envio a países terceiros estão de fato em níveis muito baixos."
A mais recente versão do projeto de lei que prevê ajuda para a Ucrânia, apresentado nesta semana ao Congresso dos EUA, formalmente mantém o valor de US$ 61 bilhões (cerca de R$ 319 bilhões). No entanto, US$ 23 bilhões (cerca de R$ 120 bilhões) não serão destinados a Kiev, mas sim à reposição das reservas militares dos EUA, informou o jornal russo Kommersant.
Neste momento, a Ucrânia demanda sobretudo munições de seus parceiros ocidentais. No início do conflito, a Ucrânia se abastecia de munições do padrão soviético, fornecidas principalmente por países do Leste Europeu. Ao passar a utilizar equipamentos da OTAN, Kiev passou a demandar nova classe de munições, produzidas pelos membros ocidentais da aliança, em particular pelos EUA.
Militares russos do grupo de forças Centro disparam um obuseiro autopropulsado 2S7 Malka em direção a posições ucranianas no setor Avdeevka da linha de frente em meio à operação militar russa na Ucrânia, 31 de março de 2024
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"As munições são o que move a guerra atualmente, e os países da OTAN não estão conseguindo suprir a Ucrânia na velocidade necessária para manter o esforço de guerra", declarou Gomes. "Nesse sentido, a Rússia surpreendeu os aliados ocidentais, já que está conseguindo manter os seus estoques."
O doutorando em relações internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp/Unicamp/PUC-SP), Tito Livio Barcellos Pereira, nota que a contraofensiva ucraniana de 2023 utilizou boa parte dos recursos disponíveis, principalmente nas áreas de veículos blindados e munições.
"Por conta do malogro da contraofensiva ucraniana - que havia sido amplamente propagandeada como uma grande operação para recuperar não só a região de Donbass, mas também a Crimeia – há menor disposição ocidental em fornecer mais ajuda militar e financeira", disse Barcellos Pereira à Sputnik Brasil. "As grandes perdas humanas e materiais ocorridas na contraofensiva fizeram políticos nos EUA a questionar se a ajuda militar e financeira seria capaz de mudar os rumos do conflito."
A escassez de munições e equipamentos militares pode ficar mais aguda em função do aumento das tensões no Oriente Médio. Conforme o conflito entre Israel e Palestina escala para incluir outros atores como o Irã, menos recursos dos EUA ficarão disponíveis para a Ucrânia, acredita Barcellos Pereira.
"Apesar de Israel ter um Exército bem equipado e treinado, é um país tão dependente dos EUA quanto a Ucrânia", disse Barcellos Pereira. "E, para a percepção política de Washington, o auxílio militar a Israel é prioritário."
Soldado israelense aguarda a visita de autoridades dos EUA perto da cidade costeira de Ashkelon. Israel, 30 de outubro de 2012
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A inclusão de Israel na já congestionada pauta do Congresso norte-americano tende a frear a aprovação de ajuda à Ucrânia, acredita o pesquisador da Escola Naval Gomes. Para ele, Kiev terá dificuldades para atuar entre congressistas pelo menos até o fim do processo eleitoral dos EUA.
"A Ucrânia é um fator divisor no Congresso e entre a opinião pública norte-americana. Mas Israel não é", disse Gomes. "Israel é um aliado muito antigo dos EUA, pelo menos desde a Guerra do Yom Kippur, em 1973. Caso os EUA precisem escolher, a escolha recairá em favor de Israel."
Neste contexto, congressistas influentes, como o representante do Partido Republicano na Câmara dos Representantes do Congresso dos EUA, Mike Johnson, avançam a ideia de retomar a ajuda à Ucrânia sob a forma de empréstimos, ao invés de doações diretas.
"A pergunta que fica é como a Ucrânia pagará esses empréstimos", questionou Barcellos Pereira. "A economia ucraniana encolheu 25% só no primeiro ano do conflito. [...] a sua dívida em relação ao PIB anual já ultrapassa 150%."
Um caminhão de carga descarrega grãos em um celeiro na vila de Zgurovka, Ucrânia, 9 de agosto de 2022
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Para o especialista, "a Ucrânia sairá desse conflito um país mais agrário, mais esparsamente povoado, com infraestrutura precária e totalmente endividado". Nesse sentido, é improvável que o país consiga adquirir os equipamentos militares necessários para manter o esforço de guerra.
"Para pagar esses empréstimos, a Ucrânia teria que realizar programas de abertura econômica e privatizar mais ativos e empresas estatais", disse Barcellos Pereira. "E isso é complicado, uma vez que a Ucrânia já é um país cuja riqueza é controlada por uma pequena faixa social."
Sob condições econômicas tão adversas, o fato de Kiev ter acenado com a possibilidade de pagar pela ajuda militar dos EUA demonstra "que a Ucrânia está desesperada, tentando garantir formas alternativas de ajuda".
A atração de empréstimos para as Forças Armadas e de investimentos para a manutenção do setor público também pode ser dificultada pelo alto nível de corrupção entre a elite governante do país.
"Soma-se a isso os diversos casos de corrupção entre os membros do alto escalão do governo Zelensky e das Forças Armadas. É importante lembrar que a Ucrânia fez trocas importantes na sua cadeia de comando e em ministérios importantes, como o Ministério da Defesa", lembrou Barcellos Pereira. "Eles foram afastados tanto pelo malogro das políticas e estratégias durante a contraofensiva, quanto por corrupção no recebimento de ajuda e equipamentos militares."
O remanejo nos mais altos cargos do governo Zelensky, no entanto, não foi suficiente para arrefecer a relutância de políticos norte-americanos em retomarem o auxílio a Kiev. Congressistas do Partido Republicano ameaçam afastar o seu representante Johnson, caso ele permita que projeto de lei sobre ajuda à Ucrânia vá para votação neste fim de semana.
"A situação para a Ucrânia é difícil. O fato de que membros do Congresso dos EUA estejam pedindo que Zelensky reembolse seus fornecedores de ajuda militar é um sinal de que há forte desgaste", concluiu Barcellos Pereira.