Artigo recém-publicado pela revista norte-americana Foreign Affairs revela que o conflito ucraniano poderia ter sido solucionado ainda em maio de 2022, quando Rússia e Ucrânia publicaram um acordo para colocar fim às hostilidades.
Os autores do artigo confirmam: Moscou e Kiev publicaram um acordo chamado Comunicado de Istambul e estavam a um passo da paz, quando países ocidentais interferiram para impedir a assinatura do armistício.
"Ao invés de abraçar o Comunicado de Istambul e subsequente processo diplomático, o Ocidente aumentou a ajuda militar para Kiev e a pressão sobre a Rússia, inclusive com a imposição de regime de sanções cada vez mais fortes", escrevem os autores na Foreign Affairs.
Novos documentos analisados pela revista reafirmam que, durante visitas de alto escalão a Kiev, representantes de EUA e Reino Unido se opuseram ao processo de paz. Para os aliados da OTAN, o conflito representava uma oportunidade de enfraquecer a Rússia às custas dos ucranianos.
Delegações da Rússia e da Ucrânia durante negociações na região belarussa de Brest, 7 de março de 2022
© AFP 2023 / Maksim Guchek / Belta / Handout
O Comunicado de Istambul, finalizado em abril de 2022, providenciava garantias de segurança multilaterais para Kiev, reconhecia o status neutro do Estado ucraniano e previa a sua entrada na União Europeia.
A Ucrânia renunciava às intenções de aderir à OTAN ou de permitir a instalação de forças militares internacionais em seu território. Em troca, garantias de segurança robustas eram oferecidas a Kiev por países como EUA, Reino Unido, França, Canadá, Alemanha, Israel, Itália, Polônia e Turquia.
As garantias de segurança previstas no documento eram amplas e bastante detalhadas. Em caso de invasão estrangeira, as partes eram obrigadas a providenciar assistência militar, impor uma zona de restrição de voo, fornecer armamentos e intervir diretamente em caso de necessidade.
O objetivo russo de desnazificação da Ucrânia também estava contemplado no Comunicado de Istambul. Além da proibição de ideologias extremistas como o "fascismo, nazismo, neonazismo e nacionalismo agressivo", a Ucrânia deveria banir a glorificação de colaboradores nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.
Com tochas, nacionalistas ucranianos de extrema-direita marcham em celebração do 113º aniversário de Stepan Bandera, colaborador de Adolf Hitler na Segunda Guerra Mundial, em Kiev, em 1º de janeiro de 2022
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/ O último elemento a ser resolvido era o território ao qual as garantias de segurança seriam estendidas. Esse importante fator seria acordado em uma reunião entre os presidentes da Rússia, Vladimir Putin, e da Ucrânia, Vladimir Zelensky, prevista para ocorrer em Jerusalém ainda no primeiro semestre de 2022.
No entanto, a intervenção do Ocidente impediu que as negociações fossem concluídas. Nas fases finais das negociações, o então primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, e o secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, se opuseram ao acordo e garantiram a Zelensky o apoio militar incondicional.
A estratégia de Washington para lidar com o conflito ucraniano não incluía negociações de paz, mas sim "suporte massivo para a Ucrânia, pressão massiva sobre a Rússia" e a mobilização de "mais de 30 países para esses esforços", disse o secretário de Estado Antony Blinken durante sua visita a Kiev em abril de 2022.
O artigo da Foreign Affairs conclui, sem tirar nem pôr, que a intervenção dos EUA e Reino Unido impediu a formalização de um acordo de paz entre Rússia e Ucrânia em maio de 2022, com o objetivo deliberado de manter a guerra em curso.
Reação distorcida no Ocidente
O artigo da Foreign Affairs foi recebido no Ocidente com ceticismo. Comentaristas ocidentais argumentaram que os EUA não poderiam fornecer garantias de segurança à Ucrânia sem arriscar um confronto nuclear com a Rússia, e por isso acordaram em rejeitar o Comunicado de Istambul.
De fato, os autores do artigo da Foreign Affairs apontam que os países do Ocidente não estavam dispostos a fornecer garantias de segurança à Ucrânia.
"Naquele momento, e nos dois anos seguintes, a disponibilidade de [...] realmente se comprometer com a defesa da Ucrânia no futuro esteve notavelmente ausente em Washington e nas capitais europeias", escreveu a Foreign Affairs.
Muito admira que Washington não tivesse a intenção de interferir diretamente no conflito ucraniano. Afinal, os EUA não escondem que mantêm pessoal militar e de inteligência na Ucrânia atualmente e, portanto, participam do esforço de guerra.
Militares ucranianos se preparam para atirar contra posições russas com um obuseiro M777 fornecido pelos EUA na região de Carcóvia, Ucrânia, 14 de julho de 2022
© AP Photo / Evgeniy Maloletka
De acordo com o jornal The New York Times, serviços de inteligência dos EUA operam bases na Ucrânia que providenciam informações sobre "alvos para ataques de mísseis, rastreio de movimentos de tropas russas e apoio a redes de espionagem".
Além disso, a presença de tropas da OTAN na Ucrânia foi recentemente confirmada pelo ministro das Relações Exteriores da Polônia, Radoslaw Sikorski. O chanceler alemão Olaf Scholz foi além disso e atestou a presença de tropas nacionais de França e Reino Unido na zona de conflito.
Conflito nuclear?
A alegação norte-americana de que aderir ao Comunicado de Istambul colocaria os EUA em risco de um conflito nuclear com a Rússia também gera questionamentos. É a manutenção do conflito, e não a paz, que coloca as partes em risco de embate nuclear. De acordo com o próprio presidente dos EUA, Joe Biden, atualmente o risco de "Armagedom nuclear" é o maior em 60 anos.
Os norte-americanos tampouco parecem ter receio de confronto nuclear quando fornecem mísseis de longo alcance para a Ucrânia atingir alvos dentro do território russo. Nesta quarta-feira (24), a mídia norte-americana relatou que os EUA forneceram mísseis ATACMS de forma secreta para a Ucrânia, apesar do risco que os ataques contra o território russo com armas norte-americanas representam para uma escalada nuclear.
Portanto, a intenção de Washington, ao rejeitar o Comunicado de Istambul, não era evitar um conflito com a Rússia ou uma escalada nuclear. Mas sim engajar-se em um conflito com Moscou em solo ucraniano, expondo o mundo ao risco de um confronto atômico.
Neutralidade em xeque
Analistas ocidentais também questionam se o Comunicado de Istambul era favorável à Ucrânia, já que previa o status neutro e não nuclear ao país.
De acordo com o então líder da delegação ucraniana, David Arakhamia, a Rússia "estava preparada para terminar a guerra se nós, como a Finlândia, adotássemos a neutralidade e nos comprometêssemos a não aderir à OTAN".
Negociações entre Rússia e Ucrânia
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Para os críticos no Ocidente, a imposição a Kiev de um status neutro, sob o modelo da neutralidade da Finlândia durante a Guerra Fria, seria um insulto.
Para aqueles que estavam interessados na paz, não fica claro por que a neutralidade seria um status degradante. A Suíça foi um Estado neutro por excelência durante séculos, o que lhe garantiu uma posição ímpar no sistema internacional. A neutralidade da Finlândia durante boa parte do século XX também parece não ter ido contra os interesses de sua população, que atingiu um dos melhores níveis de Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do mundo.
EUA não sabiam os detalhes do acordo?
Outro argumento levantado por analistas ocidentais para justificar o boicote ao Comunicado de Istambul foi que a Ucrânia não teria consultado Washington sobre os desenvolvimentos das negociações. De acordo com um diplomata norte-americano entrevistado pela Foreign Affairs, os EUA não estavam a par das provisões do acordo até a publicação do Comunicado de Istambul.
A afirmação é duvidosa: o então primeiro-ministro israelense, Naftali Bennett, líder com inegáveis laços com o Ocidente, declarou em entrevista ao jornalista Hanoch Daum ter tido acesso a 17 ou 18 rascunhos do acordo. Segundo a Foreign Affairs, o presidente belarusso Aleksandr Lukashenko também teve acesso aos documentos.
Presidente de Belarus, Aleksandr Lukashenko classificou os políticos poloneses como "malucos"
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/ No mais, os EUA repetem ad nauseam que um eventual acordo de paz deverá ser negociado pela Ucrânia sem a interferência de atores externos. Washington manifesta frequentemente essa posição para evitar negociações diretas com a Rússia sobre o conflito ucraniano. A realidade, entretanto, desmente esse argumento, pois quando a Ucrânia se engajou em negociações de maneira autônoma, em 2022, o Ocidente se recusou a reconhecer os seus resultados.
Responsabilidade moral?
O contexto no qual a revista Foreign Affairs optou por assumir a responsabilidade ocidental pelo insucesso das negociações de paz era de acirradas negociações no Congresso norte-americano para a aprovação de novo pacote de ajuda financeira para a Ucrânia.
A exposição do papel determinante dos EUA para boicotar o processo de paz foi interpretada como prova da responsabilidade moral de manter o financiamento da guerra. Afinal, houve comprometimento com a liderança ucraniana de que o Ocidente estaria ao lado de Kiev nesse embate de grandes proporções.
Soldados ucranianos cobrem os ouvidos para se proteger do bombardeio de tanques russos na região de Zaporozhie, 2 de julho de 2023
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Ainda que concedamos que houve erro da parte ocidental em evitar um acordo de paz em maio de 2022, insistir no erro hoje é uma escolha política. Os termos acordados no Comunicado de Istambul são um indicador claro de que a paz não só é possível, mas bastante factível.
A boa notícia é que o Comunicado de Istambul poderá ser utilizado como um rascunho já bastante avançado para futuras negociações que coloquem fim às hostilidades na Europa. Isso, claro, se Washington abandonar os erros do passado e se engajar no processo de paz.