Moradores assumem tarefas do poder público em meio à calamidade no Rio Grande do Sul (VÍDEOS)
Após dias seguidos de chuvas torrenciais, falta de informação e despreparo dos governos, a situação de calamidade no Rio Grande do Sul afetou 364 municípios, deixando 83 mortos, 111 desaparecidos e um "cenário de guerra" na região da Serra Gaúcha e na área metropolitana de Porto Alegre.
SputnikTudo começou com mais um dia de chuva forte,
afirmaram à Sputnik Brasil os moradores do Rio Grande do Sul afetados pelo
desastre diluviano dos últimos dias. "A gente não tinha noção da gravidade da situação. Até porque aqui é uma região bastante chuvosa. Às vezes a gente fica 15 dias com chuva, semanas sem aparecer o sol", disse o jornalista
Bruno Caldart, morador de Caxias do Sul.
"Foi na quarta-feira, no feriado ali do dia 1º de maio, que as coisas começaram a fugir um pouco do controle", afirmou Caldart. Mas foi na quinta-feira (2) que os resultados da chuva forte e constante começaram a aparecer, como a queda de pontes, os alagamentos, os deslizamentos e o soterramento de muitas casas.
"A região de Porto Alegre recebe toda a água que vem da serra. Então a situação foi agravada em Porto Alegre depois que a água que desceu começou a chegar na capital", explicou.
Moradoras de Cachoeirinha, cidade da Região Metropolitana de Porto Alegre, localizada na margem do rio Gravataí, Greice Souza e Júlia Kubaszewski Piuco relataram que alagamentos do rio são normais e esperados em chuvas intensas, tanto que há bombas instaladas nas margens para escoar a água. "Quando ligam as bombas, é questão de uma hora até a água descer", afirmou Souza.
"A gente sempre vê um alagamento quando tem uma chuva mais forte. Então achamos que era normal, que ia alagar, e que ia descer no próximo dia quando eles ligassem as bombas", disse Souza.
"Ninguém imaginou e não alertou da proporção que ia tomar, porque estava todo mundo confiando muito nas bombas", diz Piuco.
No entanto, essa confiança foi parte do problema, afirma Piuco. "Grande parte da vida, meu avô conviveu com os alagamentos porque antes era um valão aberto, né? Mas fazia anos que isso não acontecia. E todas as vezes que teve essa proporção, ele falava que [na sua época] não havia tecnologia, então não iria encher", contou.
O problema, apontam as entrevistadas, é que a infraestrutura estava abaixo da necessária para a situação. Das seis bombas, quatro estavam estragadas e duas foram desativadas para impedir a enchente nas partes mais atrás da cidade.
Foi na madrugada de quinta (2) para sexta-feira (3) que os alertas de evacuação da Defesa Civil começaram a chegar, lembra Souza. "Mas eles tinham muitas ruas pra passar. Então eles passaram ali, e depois já foram pra outros lugares, pra tentar avisar, tentar retirar quem estivesse o máximo possível."
"Então para evitar que a água ficasse mais alta ainda no Anápio, eles acabaram desligando a luz do nosso bairro para as bombas se desligarem e igualar. E aí foi que a água começou a subir de uma forma muito rápida", detalhou.
Por volta das 11h, diz Souza, "a água começou a subir muito rápido". "Havia a informação do pessoal de que rompeu um dique na ponte entre Cachoeirinha e Porto Alegre, então a água começou a subir muito rápido."
Mesmo assim, a expectativa era de que a água não passasse do joelho. "A gente levantou tudo que podia. […] os móveis, enfim, fogão, essas coisas, ficaram tudo dentro de casa."
"Nesse mesmo dia, durante a noite, a situação, assim, foi o mais chocante possível, porque a água chegou no telhado de casa, e é assim que tá até hoje."
Para Piuco, ainda que a Defesa Civil passasse alertando para uma
zona de risco de 600 metros, faltou muito preparo por parte dos governantes. A população, por exemplo, não tinha consciência dos riscos reais que estavam enfrentando.
"Por mais que não seja uma coisa corriqueira que não vá acontecer todo dia, se mora próximo de rio, é necessário ter essa educação."
Ou seja, as instruções deveriam ter sido dadas com antecedência, "não somente no momento em que a situação está se agravando".
Além disso, diz, deveriam haver sirenes de alerta para esses casos, de forma que fique claro quando houver um perigo iminente desses.
"Muitos dos resgates que estão tendo que ser feitos agora e demandam toda uma energia não teriam existido se a comunidade já tivesse essa instrução de Defesa Civil."
Voluntários se organizam para ajudar no Rio Grande do Sul
Em meio à extensão do desastre, a maior parte da ajuda recebida vem da população civil, comenta Souza, que tenta resgatar pessoas ilhadas, organizar e fazer doações. "A gente tem recebido bastante de amigos; muita doação, cesta básica, alimentos e alguns amigos fizeram uma campanha de Pix."
"Polícia, bombeiro, tudo muito burocrático para ajudarem. E a pessoa comum saiu imediatamente e foi ajudar."
Mas mesmo esse tipo de resgate despreparado pode trazer riscos, comenta Piuco. "Fui acompanhar em alguns momentos, fui passar para ver se precisavam de alguma coisa, e tivemos muitos voluntários de bermuda sem camisa nas águas contaminadas", disse a moradora, que tem um amigo internado no hospital com leptospirose.
"Sinto que a comunidade está muito jogada a si própria. Os voluntários aqui em Cachoeirinha que estão fazendo o trabalho."
Enquanto os poderes
públicos estadual e federal não chegam à região, outras pessoas se organizam para enviar auxílio aos locais afetados.
Hyatt Omar, moradora de Pelotas, ativista brasileira-palestina formada em psicologia pela York University, no Canadá, usa sua experiência arrecadando doações de alimentos e medicamentos ao povo da Faixa de Gaza para ajudar os brasileiros afetados pelas chuvas.
Até agora, a ativista já conseguiu arrecadar R$ 38 mil por meio das redes sociais.
Pelotas, no sul do estado, também foi bastante afetada pelas chuvas, "mas não está debaixo d'água como Canoas e Lageado". As doações de alimentos vão para os abrigos de Pelotas, diz Omar. Já as principais [doações] de medicamentos, colchões e travesseiros "vão ser direcionadas ao Guaíba".
Segundo a ativista, a caridade já faz parte do seu dia a dia. Um dos cinco pilares do Islã, sua fé, é o Zacate, a doação. "Anualmente, o muçulmano tem a obrigação de fazer essa doação, de acordo com a sua realidade." Além disso, sua ascendência palestina a permite se colocar "no lugar do oprimido, de quem não tem voz".
"Muitas vezes, as pessoas, por não saberem exatamente o que é o Islã, acham […] que são pessoas ruins. Porém, é essa mesma cultura e tudo isso que sempre me ensinou a ajudar o próximo."
Omar, contudo, destaca que embora muita ajuda esteja vindo neste momento, o problema não vai ser "solucionado de um dia para o outro". "As pessoas vão precisar de ajuda daqui a semanas, meses, para conseguir reconstruir uma infraestrutura."
"Tiveram pessoas que perderam tudo, fazendeiros que perderam todos os seus animais, suas casas, plantações. A gente tem inúmeras pessoas desaparecidas, pessoas que estão sem roupa, que perderam tudo."
Carlos Justen, prefeito de Campina das Missões, cidade localizada na região noroeste do Rio Grande do Sul, está atento para essas necessidades a longo prazo.
Ainda que tenha sido afetada pelas chuvas, Campina das Missões "não está na condição trágica que vive muitos municípios do estado", disse Justen. "Nossos problemas aqui se resumem a estradas e danos em algumas pontes."
Por conta disso, o município está organizando doações que visam justamente possibilitar que "as pessoas possam reiniciar suas vidas", como colchões, fogões a gás e outros eletrodomésticos, detalha o prefeito.
"É o momento mais grave que o nosso estado vive nos últimos 50, 60 anos e, neste momento, o abraço carinhoso de cada cidadão pode fazer uma grande diferença na reconstrução das vidas que permaneceram."
Os Correios do Rio de Janeiro, de São Paulo e do Paraná informam que estão aceitando doações para o Rio Grande do Sul, que serão transportadas em regime de urgência.
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