Panorama internacional

OTAN e Rússia estão à beira de uma escalada nuclear? Analistas debatem

Gastos mundiais com armas nucleares estão em alta, com aumento do potencial destrutivo de ogivas e novos sistemas de lançamento. Uso de armas dos EUA em ataque contra Sevastopol com vítimas civis eleva a possibilidade de escalada entre grandes potências.
Sputnik
Nesta segunda-feira (24), o governo russo acenou com a possibilidade de rever a sua doutrina de dissuasão nuclear, para adequá-la às realidades modernas impostas pelo conflito ucraniano e expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
De acordo com o porta-voz da presidência russa, Dmitry Peskov, a possibilidade de alterar o documento que estipula o processo de tomada de decisão sobre o uso de armas nucleares está em debate. O comentário foi feito após o chefe do Comitê de Defesa do parlamento russo, Andrei Kartapolov, defender uma revisão abrangente.
"O fato é que as discussões estão em andamento e a questão de alinhar a doutrina [nuclear] em geral com as realidades atuais está sendo trabalhada – o presidente [da Rússia, Vladimir] Putin falou sobre isso. Esse trabalho está em andamento, até o momento não tenho mais nada a dizer", disse Peskov aos repórteres.
A Doutrina Nuclear russa estipula os princípios básicos de sua política de dissuasão nuclear e o processo de tomada de decisão sobre um eventual uso dos arsenais russos. Defensiva por natureza, a doutrina russa restringe o uso de armas nucleares a situações "extremas", nas quais o país seria compelido a tomar essa drástica decisão.
Vladimir Putin, presidente da Rússia, parabeniza formandos do Ministério da Defesa, do Ministério para Situações de Emergência, do Serviço Federal de Segurança, do Serviço Federal de Guarda, do Serviço Federal de Tropas da Guarda Nacional e do Ministério do Interior, em 21 de junho de 2024
"A Rússia se reserva o direito de usar armas nucleares em resposta ao uso de armas nucleares e outros tipos de armas de destruição em massa contra ela e/ou seus aliados, bem como em caso de agressão contra a Rússia com o uso de armas convencionais, quando a própria existência do Estado estiver em perigo", versa o documento estatal russo.
A eventual alteração na Doutrina Nuclear da Rússia pode se fazer necessária, frente à autorização dada a Kiev pelas potências nucleares EUA e Reino Unido para utilização de armamentos ocidentais contra alvos no território russo.
Neste domingo (23), um ataque contra a cidade de Sevastopol, na Crimeia, utilizando mísseis norte-americanos ATACMS, deixou pelo menos quatro mortos, incluindo duas crianças, e mais de 150 feridos. Outras quatro crianças foram transportadas para um hospital pediátrico em Moscou, e seguem em estado grave, de acordo com informações divulgadas nesta terça-feira (25).
Memorial preparado no parque Komsomolsky, em Sevastopol, em homenagem a Maria Baida, no dia de luto pelos mortos em um ataque com mísseis das Forças Armadas da Ucrânia, em 24 de junho de 2024
O Ministério das Relações Exteriores da Rússia convocou a embaixadora dos EUA em Moscou, Lynne Tracy, para expressar sua indignação com o uso irresponsável de armas norte-americanas em seu território, e prometeu retaliação.
Especialistas apontam que o conflito ucraniano se encontra em momento crítico, no qual o potencial de escalada é real. Recentes dados do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI) revelam um aumento generalizado nos gastos internacionais com armas nucleares nos últimos anos, adicionando mais um elemento temeroso ao já complicado ambiente internacional.
Imagem de ogiva nuclear norte-americana instalada no interior do estado de Dakota do Norte
Um dos estopins para a volta das armas nucleares à agenda internacional foi a decisão da administração Donald Trump, nos EUA, de antagonizar abertamente com países que consideram seus potenciais adversários geopolíticos, como Rússia e China, disse a professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Danielle Ayres.
"Há uma grande clivagem, já que estamos em meio a uma disputa pela hegemonia mundial, gerada em grande parte pela ascensão da China. Em 2019, o então líder da Casa Branca, Donald Trump, aposta na divisão do mundo entre 'nós' e 'eles', e começa a preparar os EUA para esse embate", disse Ayres à Sputnik Brasil. "Os EUA têm interesse em manter essa disputa na arena militar, afinal é um setor no qual os norte-americanos têm vantagem considerável."
Segundo ela, países como a Rússia reagem a essa mudança, buscando reforçar a sua capacidade dissuasória e a sua influência internacional. A modernização dos arsenais nucleares e aumento de sua capacidade técnica são um dos instrumentos para atingir esse objetivo.
"Por outro lado, os novos dados apontam para o foco nas armas nucleares estratégicas, que têm capacidade de atingir alvos a grandes distâncias e, no caso de Rússia e EUA, provocar a destruição mútua", apontou Ayres. "Mas, o investimento em armas nucleares táticas, aquelas que podem ser usadas para destruição pontual de alvos militares, não cresceu tanto. Então vemos que há um investimento por parte das potências na sua capacidade de dissuasão."
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A capacidade dissuasória é a principal função das armas nucleares, que não são construídas para serem, de fato, utilizadas no campo de batalha. Até o momento, não há possibilidade de uso limitado de armas nucleares, isto é, garantindo efeito destrutivo de pequena ou média escala.
"Em condições normais, as armas nucleares são usadas como efeito dissuasório", disse o mestre em ciências militares pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, Pedro Mendes Martins, à Sputnik Brasil. "A única vez que elas foram usadas foi em 1945, em Hiroshima e Nagasaki, e depois nunca mais. Isso mostra que as armas nucleares foram projetadas para que os países não as utilizem."

Ogivas modernas

O aumento nos investimentos com arsenais nucleares pelas principais potências nucleares, com destaque para EUA e Rússia, se dá pela necessidade de renovação de ogivas antigas e otimização de seus custos de manutenção.
"Já existia a tendência de aumento no investimento e modernização de arsenais nucleares, por um motivo muito simples: ogivas nucleares têm prazo de validade. Muitas ogivas da época da Guerra Fria precisam ser renovadas por motivos técnicos", revelou Martins.
Segundo ele, um olhar atento aos dados públicos sobre os principais arsenais nucleares do mundo revela que "há uma redução dos arsenais nucleares de Rússia e EUA, justamente por eles estarem trocando ogivas antigas por novas, mais potentes".
"A tendência de reciclar a capacidade nuclear é de longo prazo, afinal manter uma ogiva nuclear é muito caro e demanda a mobilização de milhares de pessoas. Então a redução quantitativa do arsenal, com a manutenção ou aumento do seu poder, interessa às grandes potências", explicou Martins. "É possível reduzir o custo econômico e de manutenção, mas com uma capacidade destrutiva muito maior."
A aceleração no ritmo dessa modernização nuclear chama mais atenção dos analistas atualmente, em função do "contexto político muito mais grave em que estamos, com uma guerra interestatal na Europa e outros conflitos de alta intensidade".

Foco nos submarinos

A renovação dos arsenais também consolida a tendência de investir em veículos de lançamento que garantam a capacidade de retaliação nuclear, em especial os submarinos nuclearmente armados, apontou o mestre em ciências militares.
"É importante notar o aumento da relevância das armas nucleares instaladas em mísseis balísticos lançados a partir de submarinos. A presença dessas ogivas em submarinos que percorrem o planeta Terra 24 horas por dia é o que, atualmente, garante a dissuasão nuclear das grandes potências", asseverou Martins.
Outras tradicionais bases de lançamento de armas nucleares são os silos terrestres e os aviões bombardeiros estratégicos. No entanto, as infraestruturas necessárias para operar essas bases de lançamento são de larga escala e, portanto, facilmente detectáveis.
Bombardeiro estratégico Tu-160 acompanhado por quatro caças Su-35S durante o desfile aéreo no Dia da Vitória em Moscou, 9 de maio de 2021
"A construção de silos para a instalação de armas nucleares atualmente é facilmente identificada por satélites. Já no caso da Crise dos Mísseis em Cuba, um avião B-52 americano foi capaz de perceber a construção de um silo", explicou Martins. "Já o lançamento por aviões bombardeiros estratégicos também tem problemas, por serem aeronaves de grande porte, as quais todos sabem aonde ficam estacionadas."
Lançamento de míssil balístico Bulava a partir do submarino nuclear russo Yuri Dolgoruky, no mar Branco, em direção ao polígono de Kura (foto de arquivo)
Portanto, as armas nucleares instaladas em silos e bombardeiros estratégicos são "os alvos prioritários de um primeiro ataque nuclear, e podem ficar inutilizadas em questão de minutos". Para garantir a retaliação nuclear é necessário ter uma frota de submarinos prontos para responder a uma agressão.
"A dissuasão fica garantida se o país possui submarinos nuclearmente armados, capazes de realizar um ataque retaliatório a qualquer momento", disse Martins. "Mas não é fácil nem barato manter submarinos nuclearmente armados com ogivas em alerta, operando constantemente. Por isso poucos países mantêm essa capacidade."
O especialista acredita que, apesar do perigo, Rússia e EUA ainda têm capacidade de negociar e impedir uma escalada nuclear, no contexto do conflito ucraniano. Para ele, a comunidade internacional tem base legal e política para retomar os acordos de controle de armamentos e restringir o uso desses arsenais.
Nesta terça-feira (25), a candidata ao Senado dos EUA por Nova York, Diane Sare, defendeu a retomada de negociações nucleares ente Washington e Moscou. Sare disse à Sputnik que o diálogo na esfera nuclear é necessário e consiste em uma "responsabilidade perante o mundo". Para ela, os EUA devem investir na cooperação científica com a Rússia e "deixar para trás a retórica e a prática da guerra".
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