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Há 70 anos ele deixou 'a vida para entrar na história': legado de Vargas ainda é relevante?

Há exatos 70 anos, antes de acabar com a própria vida com um tiro no peito, o então presidente, Getúlio Vargas, escreveu a seguinte frase em uma carta testamento: "Deixo a vida para entrar na História".
Sputnik
Sete décadas depois, vários legados deixados por ele ainda influenciam a política brasileira, de acordo com especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil no podcast Jabuticaba sem Caroço.
O professor de história da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Marcus Dezemone lembrou que Getúlio foi o mandatário que mais tempo permaneceu à frente do poder na história do país: 15 anos seguidos, de 1930 até 1945, e três anos em seu último mandato.
"Tem momentos bem marcados, fases diferenciadas, e na sequência com o segundo governo, no qual ele foi eleito, o único momento em que ele foi eleito pelo voto direto, que durou de 1951 até terminar de maneira traumática com o presidente dando um tiro no próprio peito".
De acordo com o professor de ciência política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Jorge Chaloub, o mais longevo mandatário do Brasil se sustentou no poder com arranjos e coalizões políticas muito diversas.

"Quem apoiava o Getúlio em 1930 não necessariamente era o mesmo grupo que o apoiava em 1937, pelo menos no peso que os atores tinham, e que não eram os mesmos atores que o ajudaram a chegar no poder em 1950", comentou.

Considerado o pai dos direitos trabalhistas no país, Vargas criou as Leis de Trabalho (CLT), que colaborou de maneira decisiva para que ele ocupasse até hoje um lugar privilegiado na memória da classe trabalhadora brasileira, de acordo com os historiadores.
Quadro e busto do ex-presidente Getúlio Vargas, parte do acervo do Museu da República, no Rio de Janeiro. O local foi sede da Presidência da República até 1960, quando foi transformado em museu.
O governo Vargas também introduziu um discurso que valorizava pela primeira vez na história brasileira a figura do trabalhador, salientou o professor de história:
"Quem trabalhava no Brasil do século XIX? Trabalhava quem não tinha liberdade. Trabalhava a população que era escravizada. E agora, na década de 30, em especial no Estado Novo, o que se escuta com esses veículos de comunicação de massa é a ideia de que o trabalhador e de que o trabalho são muito importantes para o engrandecimento do país", esclareceu o professor.
Além dessa dimensão simbólica, Vargas acertou ao investir também na dimensão material, com mais postos de trabalho e a legislação trabalhista.
Ao citar o termo "cidadania regulada" ou "cidadania dos trabalhadores", Chaloub destacou que Vargas deu início ao discurso de concessão de direitos, embora restrita à classe trabalhadora, já que as políticas sociais universalizadas viriam apenas com a Constituição de 1988:
"Antes o direito à saúde, o direito à previdência passava pelo sindicato, por um aparelho sindical [...] carteira de trabalho era um pouco o documento da cidadania, até mais que a carteira de identidade, em boa medida".
Dezemone também destacou que a primeira grande transformação impulsionada por Vargas foi a passagem de um Brasil agrário para um Brasil urbanizado e industrial.
"Vai ser na segunda metade dos anos 50, já depois do falecimento de Getúlio, mas pouco tempo depois, vale destacar, que o Brasil se tornou um país em que a indústria passou a compor a maior parte da geração das suas riquezas, superando pela primeira vez a agricultura".
A legislação trabalhista também ajudou a estruturar a mão de obra da nova realidade urbana, acrescentou. É nessa época que são criadas companhias nacionais emblemáticas como Petrobras, Eletrobras, Companhia Siderúrgica Nacional, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O sistema de educação pública também deve muito ao legado getulista, assim como o processo de massificação da política brasileira que muda o modo de fazer política: "Isso é um elemento absolutamente central, é um legado muito central para essa trajetória", opinou o professor de ciência política.

Estado Novo

Os especialistas ressaltaram, ao mesmo tempo, a figura controversa e ambígua de Vargas, sobretudo, devido aos períodos em que ele governou com mãos de ferro e autoritarismo, antes de ser eleito pelo voto popular em 1950.
Nos momentos anteriores, como em 1930, chegou ao poder pelo movimento armado, de um golpe de Estado. Em 1934, ele foi eleito indiretamente pelo Congresso Nacional e em 1937 deu um segundo golpe de Estado.
"Getúlio foi um ditador terrível em 37, isso é um dado, e não apenas contra a direita liberal, contra os trabalhadores, contra os comunistas [...] enfim, tem várias coisas que são indefensáveis do ponto de vista público", afirmou o cientista político.
O Estado Novo proibiu eleições, partidos políticos e perseguiu a oposição. O país viveu sob um período de censura, cerceamento da liberdade de expressão, encarceramento, e repressão. Mas também foi um período em que o governo dialogou com as massas, ponderou Chaloub.
Em meio à restrição aos direitos individuais e aos direitos políticos, o Estado Novo investiu na produção e divulgação da legislação trabalhista "que permanece até hoje como a principal marca associada à figura de Getúlio na memória popular", comentou Dezemone.
O governo Vargas também foi pioneiro na utilização da propaganda política na época, se utilizando de técnicas avançadas de comunicação de massa, como rádio, folhetos e comícios, em um esforço intencional de construir uma identidade nacional brasileira ligada ao popular, frisou:

"Não foi à toa que o Estado Novo procurou se associar às manifestações da cultura popular, ao samba, censurando letras que faziam apologia à malandragem, importante frisar, estimulando letras que falavam positivamente do trabalhador. Criou regras para o Carnaval, com o desfile das escolas de samba", prosseguiu o professor de história. "Foi por isso que uma das escolas foi desclassificada nos anos 40, porque escolheu como tema Branca de Neve, dos estúdios Disney, que foi um sucesso em 1938, o filme da Branca de Neve. Não podia, tinha que ser temas nacionais", explicou Dezemone.

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O fim da Segunda Guerra Mundial foi crucial para uma mudança no discurso e nas práticas do segundo governo de Vargas:
"Você tem a reconstrução da guerra, você tem o Plano Marshall na Europa, a reconstrução do Japão após a guerra, o crescimento de uma sensibilidade social democrata na Europa, o desenvolvimentismo na América Latina, com formulações próprias [...] que vão marcar esse governo Vargas, que vai ter uma disputa sobre o modelo de desenvolvimento [...] e o Vargas vai avançar nesse cenário e vai criar essa ideia de um presidente que trouxe musculatura ao Estado, que trouxe a criação de empresas públicas, estatais", contou o cientista político.
Quando Getúlio percebeu perda de apoio, mudou o discurso que se voltou para a mobilização e inserção subalterna dos atores, a partir do trabalho, comentou o especialista. Foi quando consolidou a sua imagem de líder popular e, após ser deposto, em 1945, volta à presidência em 1951 eleito democraticamente.
A crise do segundo governo Vargas que desencadeou no suicídio tem relação, inclusive, com esse movimento de empoderar as massas, o que irritou a classe hegemônica e burguesa do país. O episódio em que João Goulart, então ministro da Fazenda, dobrou o salário mínimo, em 1953, foi um dos estopins da crise, argumentou Chaloub.

Herança que se renova

Nacionalismo e estatismo são os principais legados de Vargas, na opinião do professor de história, e também os mais combatidos pelos opositores e críticos do getulismo, que chamam essa atuação pejorativamente de populismo.
O Brasil que Getúlio encontrou, quando assumiu em 1930, e o atual, embora muito distintos, guardam muitas semelhanças, afirmou Dezemone, como concentração fundiária, a profunda desigualdade e "a demanda por fornecer para essa população níveis maiores de bem-estar".

"Getúlio contribuiu para a formação do que podemos chamar de uma cultura política. Uma cultura política que tem, por um lado, uma dimensão nacionalista. O entendimento de que, muitas vezes, o interesse estrangeiro não seria compatível com o interesse nacional, e para promover o desenvolvimento nacional caberia um papel de intervenção do Estado na economia", comentou.

Após a morte de Vargas e o golpe empresarial-militar, em 1964, alguns governos ditatoriais intensificaram a proposta estatista, principalmente durante o milagre econômico e no governo Geisel.
O avanço do neoliberalismo no Brasil, na década de 1990, com redução do tamanho do Estado, de privatizações e de abertura da economia brasileira para a entrada de empresas, de maiores níveis de circulação de capitais estrangeiros representou o fim da Era Vargas, explicou o professor, mas a perspectiva nacionalista foi retomada nos governos do Partido dos trabalhadores (PT).
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O suicídio

Os professores destacaram que ao tirar a própria vida de maneira dramática, Getúlio logrou adiar um possível golpe de Estado:
"A morte de Getúlio gerou uma comoção popular que pegou a classe política desprevenida. E aqueles que estavam apostando numa mudança mais profunda de poder com a morte de Getúlio tiveram que se contentar em um governo com elementos que ainda tinham representatividade no getulismo", disse Dezemone.
Ele citou registros que mostram ataques a sedes de jornais que faziam oposição ao governo Vargas, como o Jornal O Globo, e à Embaixada dos Estados Unidos, que à época funcionava no Rio de Janeiro, ainda capital do Brasil.

"A polícia, que tentou fazer algum tipo de repressão também foi enfrentada. E mais do que isso, no ano seguinte, quando acontecem as eleições presidenciais, essas eleições foram vencidas por um dos poucos governadores que permaneceu leal a Getúlio na crise de 1954, que foi o Juscelino Kubitschek, tendo como vice o próprio João Goulart".

O ato de se matar no palácio presidencial, centro do poder, fez com que Vargas continuasse "como protagonista da política brasileira durante alguns anos", acrescentou Chaloub ao ressaltar que embora Vargas não tivesse o dom da oratória, manejava muito bem os símbolos e logrou construir a imagem do pai dos pobres, "a figura do pai da pátria".
O suicídio, segundo ele, foi a última das simbologias construídas pelo ex-presidente e que se mantém viva até hoje.
"Getúlio toma aquilo [suicídio] como um ato pessoal, transforma aquilo em um grande ato político, e a carta de testamento é a demonstração perfeita disso, um ato político em que o simbólico foi muito bem pensado", completou.
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