A recente aprovação pelo Senado Federal de nova lei que regulamenta as atividades espaciais no Brasil não oculta a persistente queda no orçamento da Agência Espacial Brasileira (AEB). O Projeto de Lei 1.006/2022 busca atrair a iniciativa privada para revitalizar esse setor estratégico para o Brasil.
Apesar dos avanços regulatórios, estudo realizado pelo Centro de Estudos Sociedade, Universidade e Ciência (SoU_Ciência) aponta que o atual orçamento da AEB é o menor em 20 anos. Após período de bonança vivido entre 2004 e 2006, durante o primeiro mandato do presidente Lula da Silva, o orçamento da agência passou a sofrer repetidas reduções.
Após o pico de R$ 500 milhões ao ano atingido em 2006, a agência teve seus recursos reduzidos para R$ 250 milhões em 2007. Desde então, o orçamento da AEB segue em tendência de queda, para atingir seu patamar mais baixo em 2022.
Base de Alcântara.
© Estadão Conteúdo / Lisandra Paraguassu
De acordo com os autores do estudo, publicado na revista Interesse Nacional, "enquanto o mundo aposta nas pesquisas espaciais, a AEB terminou 2021 com um orçamento liquidado de R$ 67,8 milhões. O valor está abaixo do início da série histórica em 2000, que era de R$ 68 milhões".
Para os acadêmicos, "a queda nos investimentos revela um descompasso diante dos desafios e das potencialidades do país na área espacial". Além da falta de prioridade política e econômica concedida ao setor, a baixa conscientização da opinião pública acerca da relevância desses investimentos também contribui para a crise, acredita o coordenador de engenharias do projeto NanoSatC-Br e professor adjunto de engenharia aeroespacial da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Eduardo Escobar Burger.
"Uma das causas principais é a pouca conscientização da sociedade sobre a importância estratégica e prática do programa espacial. Por ser um tema de interesse menos imediato para a população em geral, ele não recebe a atenção e o apoio necessários, dificultando a alocação de investimentos sustentáveis", disse Burger à Sputnik Brasil.
Além disso, o "impacto da redução orçamentária é direto na formação de recursos humanos: menos investimentos resultam em menos bolsas de estudo, projetos de pesquisa e oportunidades de estágio, limitando o desenvolvimento de quadros especializados que poderiam impulsionar a inovação e competitividade do setor espacial brasileiro".
Satélite brasileiro utilizado para identificar bolhas de plasma no espaço, em exposição no 4º SpaceBR Show, maior feira espacial da América Latina. São Paulo (SP), 22 de maio de 2024
© Sputnik / Guilherme Correia
O professor de Propulsão Espacial do curso de Engenharia Aeroespacial da UFABC, Annibal Hetem, concorda, e nota que engenheiros aeroespaciais brasileiros se dedicam cada vez mais ao setor de aviação, e menos às atividades espaciais. A falta de investimentos governamentais diminui ainda mais a oferta de empregos no setor espacial, minguando a capacidade brasileira no médio e longo prazo.
"O setor espacial brasileiro depende atualmente de orçamento governamental", disse Burger. "Isso é uma realidade comum na maioria dos países, já que o desenvolvimento de atividades espaciais demanda investimentos consideráveis em infraestrutura, pesquisa e inovação."
De acordo com Hetem, a centralidade do papel do Estado vem sendo relativizada em países com setores aeroespaciais bem desenvolvidos, como os EUA. Para o especialista da UFABC, a entrada de empresas como SpaceX, Boeing, Blue Origin e Virgin Galactic modificou o modelo de desenvolvimento do setor.
"Depois do financiamento estatal e da consolidação da tecnologia, isso vira um produto. E um produto rentável, que paga o alto investimento que demandou", disse Hetem à Sputnik Brasil. "As empresas privadas vieram para ficar. No início, demandou coragem, mas agora já vemos que é possível. O setor empresarial brasileiro precisa amadurecer para ver que o setor espacial dá retorno."
Além do mercado nacional, empresas do setor espacial brasileiro podem atender à demanda de países da América do Sul e África, acredita o professor Hetem. Uma vez com o satélite em órbita, as imagens obtidas podem ser alugadas para os países pelos quais ele passa, com ênfase em mercados do Sul Global que não desenvolveram suas próprias tecnologias.
No Brasil, o uso de tecnologia espacial civil é particularmente desenvolvido no setor do agronegócio, que utiliza satélites para monitoramento de safras, gerenciamento meteorológico e avaliação de áreas carentes de insumo e irrigação.
"As principais áreas de aplicação da tecnologia espacial no Brasil atualmente incluem o monitoramento ambiental e climático, sensoriamento remoto para mapeamento agrícola e florestal, comunicação por satélite, previsão do tempo e monitoramento de desastres naturais", disse Burger. "A aplicação civil dessas tecnologias está em crescimento, mas ainda carece de maior difusão e entendimento por parte da sociedade."
Investimento militar no setor espacial
A queda no investimento estatal no setor aeroespacial também é reflexo da baixa complementariedade entre as tecnologias civis e militares disponíveis no Brasil hoje. De acordo com Hatem, a obtenção pelos militares da tecnologia de foguetes de combustível sólido é insuficiente para as demandas civis atuais.
"Nas décadas de 60 e 70, os militares desenvolveram seus foguetes movidos à combustível sólido que, apesar de atenderem às demandas das Forças Armadas, não são o suficiente para colocar um satélite em órbita", explicou Hetem. "Para isso, precisaríamos da tecnologia de combustível líquido, que o Brasil infelizmente ainda não detém."
No passado, o Brasil buscou cooperação internacional com países do Leste Europeu para obter essa tecnologia, porém, sem sucesso. Hetem lembra que "esse tipo de conhecimento, outros países não vendem" e lamentou que a Agência Espacial Brasileira não invista mais recursos neste empreendimento.
Míssil Antinavio Nacional de Superfície (Mansup) da Marinha do Brasil, fabricado pela Avibras e exposto na LAAD 2019
© Sputnik / Thiago de Araújo
"Apesar do combustível sólido brasileiro ser de alta qualidade, inclusive apto para a exportação, ele não é suficiente para as demandas civis de colocar um satélite em órbita", disse Hetem. "Precisaríamos de mais fôlego por parte da AEB para dar esse passo adiante, mas, infelizmente, vemos esses problemas de orçamento."
Neste contexto, o especialista recebeu com estranhamento a decisão da AEB de cancelar o projeto brasileiro para desenvolver um Veículo Lançador de Satélites, o projeto VLS. Afinal, é justamente a ausência dessa capacidade que limita as atividades espaciais brasileiras na atualidade.
"Foi muito surpreendente que a AEB cancelou o programa VLS em seu planejamento estratégico. Mais tarde, fomos averiguar que o programa já está cancelado há três anos, mas isso não foi comunicado publicamente", lamentou Hetem. "Agora está oficializado, e isso demonstra um desengajamento da AEB."
O programa VLS tinha como objetivo desenvolver foguete nacional capaz de colocar satélites em órbita. A empreitada exige recursos vultuosos, e testes como o do VLS-1 V03 resultaram em falhas graves, com vítimas fatais. Por outro lado, o projeto garante a formação de técnicos capacitados e proveria ao país acesso à tecnologia de ponta.
"De fato, interromper projetos de longa data pode impactar o desenvolvimento do setor, na percepção da sociedade sobre esses investimentos, além do desperdício dos recursos públicos e também na perda de conhecimento e na formação de profissionais", notou o professor da UFSM Burger. "Porém, vale considerar que o Brasil já investiu muitos recursos no setor de lançadores sem alcançar resultados satisfatórios [...] isso sugere que é mais estratégico focar os recursos em áreas onde o país já possui potencial consolidado, como o desenvolvimento de satélites."
O professor da UFSM nota que nem tudo está perdido, afinal a Financiadora de Estudos e Projetos FINEP mantém investimentos no setor de lançamentos, fechando contratos com empresas privadas para desenvolver lançadores para pequenos satélites.
Na província de Shanxi, na China, um satélite desenvolvido em conjunto por cientistas chineses e brasileiros é lançado, em 21 de outubro de 2003
© AP Photo / Li Gang / Xinhua
"Essa iniciativa pode trazer novas perspectivas para o setor, buscando inovações e soluções mais competitivas. No entanto, é fundamental que tais esforços sejam acompanhados por uma visão clara de longo prazo, para que possam contribuir de forma efetiva ao programa espacial brasileiro", concluiu o especialista.