Panorama internacional

EUA usam Israel como proxy para conter presença de Rússia e China no Oriente Médio, diz analista

Após ataques iranianos contra o território de Israel, EUA continuam afirmando não estar interessados em um conflito regional de larga escala. Afinal, se Washington não quer a guerra no Oriente Médio, por que envia recursos militares e financeiros para alimentar o conflito? A Sputnik Brasil conversou com especialistas para desvendar esse mistério.
Sputnik
Nesta terça-feira (30), o Irã realizou ataque com cerca de 200 mísseis balísticos contra o território israelense, em retaliação ao assassinato de comandantes do Hezbollah, como o líder Hassan Nasrallah, e de alto comandantes de suas próprias fileiras do Corpo de Guardiões da Revolução Islâmica (IRGC, na sigla em inglês).
Israel declarou ter interceptado boa parte dos mísseis, com auxílio dos EUA, que teriam mobilizado dois destróieres para cumprir a tarefa. Os relatos iranianos, por sua vez, apontam para maior grau de sucesso dos ataques.
Após o ocorrido, o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu disse que o Irã "pagará" pelo seu "grande erro", enquanto o Irã prometeu uma resposta "esmagadora" se Israel retaliar.
Bandeiras dos EUA e de Israel são incendiadas, enquanto um manifestante segura um pôster do líder morto do Hezbollah, Hassan Nasrallah, em Teerã, Irã, 2 de outubro de 2024
Autoridades norte-americanas foram rápidas ao proclamar o seu apoio incondicional a Tel Aviv, em solidariedade ao que consideraram um ataque não provocado por parte do Irã. No entanto, os EUA mantêm um discurso apaziguador, alegando que o país não teria interesse em um confronto regional no Oriente Médio.

Logo após os ataques, o presidente dos EUA, Joe Biden, declarou ter "acabado de falar com o primeiro-ministro Netanyahu para reafirmar o apoio ferrenho dos EUA à segurança de Israel". Na mesma ocasião, o secretário de Estado, Antony Blinken, declarou por meio de nota que, "embora não busquemos uma escalada, continuaremos a apoiar a defesa de Israel".

Ainda que mantenham o fornecimento de apoio logístico e militar a Israel inalterado, autoridades norte-americanas alegam estarem empenhadas na busca da paz na região. No caso da Faixa de Gaza, o primeiro front da atual conflagração, o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, realizou cerca de 18 viagens à região, alegadamente em busca de um cessar-fogo.
O secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, participa de uma Reunião Ministerial Conjunta do Conselho de Cooperação do Golfo e dos EUA para discutir as crises humanitárias enfrentadas em Gaza, em Riad, Arábia Saudita, 29 de abril de 2024
Enquanto a mídia não ocidental já reportava em detalhes as primeiras incursões israelenses em território libanês, na manhã desta terça-feira (30), o jornal The New York Times celebrava que "autoridades norte-americanas [...] persuadiram os israelenses a não conduzir uma invasão terrestre de maior escala no sul do Líbano".
A relutância norte-americana em agir de maneira incisiva sobre o seu aliado Israel para obter a desescalada que diz almejar surpreende os especialistas. Afinal, se Washington tem interesse na paz no Oriente Médio, por que segue financiando a guerra?
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Líder do Hezbollah estava disposto a aceitar cessar-fogo antes de sua morte, diz MRE libanês
Para o professor de Relações Internacionais da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), Vinícius Rodrigues Vieira, os EUA podem manter sua posição ambígua, uma vez que o uso de Israel como ator proxy no Oriente Médio não ameaça a participação direta de Washington no conflito regional. Atores proxys são aqueles que recebem financiamento e diretivas de entidades mais poderosas, mantendo-se em uma posição de subordinação.

"Desde o fim da Guerra Fria, claramente Israel assumiu o caráter de proxy dos Estados Unidos, mais do que de um aliado propriamente dito. Então, os EUA podem se dar ao luxo dessa contradição: apoiar determinada força que, na verdade, é o seu proxy contra um inimigo, enquanto diz ser a favor de uma solução diplomática", disse Vieira. "Ou seja, mantêm um permanente estado de guerra, sem derrotar de vez o inimigo, e, ao mesmo tempo, não se expõem ao risco de uma guerra total."

A posição paradoxal ainda advém da mediação que o governo norte-americano busca entre atender os interesses de lobbies internos favoráveis a Israel e uma opinião pública que questiona não só o envolvimento dos EUA em conflitos internacionais, mas também, entre grupos mais jovens, as ações militares israelenses na Faixa de Gaza.
Manifestante agita bandeira libanesa em protesto contra a guerra em Gaza e no Líbano, em Los Angeles, EUA, 24 de setembro de 2024
"Biden pode se dar ao luxo de manter uma posição tradicional de apoio a Israel, enquanto diz aos mais jovens estar negociando para que Israel não seja tão duro. Nós temos aqui exatamente esse equilíbrio delicado, compreensível da lógica de manutenção do poder", disse Vieira. "O período eleitoral pode expandir ainda mais a diferença entre o que é dito publicamente pelo governo dos EUA e suas ações no terreno."
Apesar do discurso de apoio a Israel, os EUA perseguem seus próprios interesses econômicos e geopolíticos no Oriente Médio, assevera Vieira. Para ele, Washington tem pouco espaço para desgaste na região após a sua saída desastrosa do Afeganistão, em agosto de 2021.
"Os EUA querem sinalizar no Oriente Médio que não perdem terreno em relação a China e Rússia", disse Vieira. "Qualquer perda de espaço, qualquer centímetro que Israel perca, é uma perda também para os EUA, já que Tel Aviv é um proxy de Washington em um embate global mais amplo."
Apesar da ascensão econômica asiática e das perspectivas de transição energética, o Oriente Médio segue como uma região de alto valor estratégico. O seu papel histórico de garantir a conectividade entre os polos de poder asiático e europeu se mantém em voga.
Homem mostra fotos de seus parentes no local de um ataque aéreo israelense em Saksakieh, no sul do Líbano, 26 de setembro de 2024
"Quem dominar o Oriente Médio, principalmente se houver o estabelecimento de algum entendimento de fato entre Israel e a Arábia Saudita, tem uma alternativa em relação à Nova Rota da Seda, uma iniciativa liderada pela China, que sinaliza para o declínio dos EUA na região", disse Vieira.
O doutor em história pela Universidade de York do Canadá, Tufy Kairuz, concorda, lembrando que a geografia do Oriente Médio, aliada às suas riquezas em recursos naturais, determina a sua relevância estratégica.
"Faço uma analogia com o jogo de futebol: quem domina as ações no meio de campo em um jogo de futebol é vitorioso. É quase impossível alguém não dominar o meio de campo e ganhar uma partida de futebol", disse Kairuz à Sputnik Brasil. "Se olharmos para o mapa-múndi, o Oriente Médio é uma espécie de meio de campo geopolítico do planeta."
Além dos interesses nos recursos energéticos da região, particularmente importantes para EUA e China, a Rússia também considera o Oriente Médio um acesso fundamental à Ásia Central e ao Cáucaso.
"O interesse russo na região faz todo o sentido, e vem desde os tempos do Império Russo e da União Soviética. É importante lembrar que a Rússia mantém portos em águas quentes na região, como as estruturas na região de Tartus, na Síria", considerou Kairuz. "Essas são posições relevantes no Mediterrâneo, que permitem comunicação com a Europa."
Do ponto de vista norte-americano, a manutenção de sua influência no Oriente Médio seria ameaçada, regionalmente, pelo Irã. Portanto, o esforço israelense de derrotar o Hezbollah atende aos interesses de Washington de forma conveniente, acredita o professor da FAAP Vieira.

"Os Estados Unidos consideram Hezbollah um grupo terrorista, as declarações da [vice-presidente dos EUA] Kamala Harris e do [presidente dos EUA] Joe Biden nesse sentido são inequívocas", notou Vieira. "Mas, acima de tudo, o objetivo dos EUA é enfraquecer o Irã. E se um ataque israelense destrói a cadeia de comando do Hezbollah, então o Irã se sente mais fraco."

O doutor em história Kairuz diverge, dizendo que os interesses dos EUA e de Israel podem, sim, estar em conflito neste momento. Para ele, os norte-americanos não percebem ameaça iminente na região e são levados ao conflito em função do poderio do lobby sionista atuante em Washington.
Funcionários da prefeitura penduram uma bandeira israelense sobre prédio atingido por um foguete disparado do Líbano, em Kiryat Bialik, norte de Israel, 22 de setembro de 2024
"Não acho que os EUA tenham interesse neste conflito. Eles prefeririam manter a égide da pax americana no Oriente Médio, se fosse possível", disse Kairuz. "Países que se opunham aos EUA na região, como a Síria, foram enfraquecidos. O que restou foi um grupo chamado Eixo da Resistência, que inclui países pobres como o Iêmen, alguns grupos no Iraque e, principalmente, o Hezbollah no Líbano."
O analista ainda reconhece que os recentes ataques aparentemente realizados pelo serviço de inteligência israelense contra a liderança e estrutura de comunicação do Hezbollah enfraqueceram o grupo. Nesse contexto, Kairuz questiona a real ameaça que o Hezbollah representaria para uma grande potência, como os EUA.
"Foram golpes significativos, que mostraram que existe uma brecha grave, o comprometimento do sistema de segurança do Hezbollah. A eliminação de lideranças como o próprio [Hassan] Nasrallah é algo inédito, que desorganiza o grupo e o enfraquece até psicologicamente", asseverou Kairuz. "Nesse contexto, não acredito que o Hezbollah seja uma ameaça aos EUA, mas sim a Israel."
Nesta quarta-feira (3), pelo menos nove pessoas faleceram e 14 ficaram feridas durante ataques aéreos israelenses contra a região da capital libanesa, Beirute. O grupo Hezbollah declarou ter realizado ataques com bombas contra tropas israelenses na região sul do Líbano. Países como Rússia e Espanha já iniciaram a evacuação de seus nacionais do Líbano. O Brasil já prepara voos da Força Aérea Brasileira (FAB) para evacuar seus nacionais. O governo dos EUA solicitou que seus nacionais se retirem do Líbano, utilizando rotas comerciais.
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